Livro de Luiz Damasceno pactua ficção e realidade

Damasceno nos ensina que escrita e imagens são matérias do mesmo processo imaginativo e podem dar-se as mãos e caminhar juntas.

Livro de Luiz Damasceno pactua ficção e realidade

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 05/06/2025 às 06:05 | Atualizado em: 05/06/2025 às 11:57

Das páginas do livro “Da vida e do viver: quase eu” (Valer), de Luiz Damasceno, brotam imagens do solo fértil da criação literária que se multiplicam do começo ao fim da narrativa, para o deleite e prazer dos leitores(as).

Damasceno nos ensina que escrita e imagens são matérias do mesmo processo imaginativo e podem dar-se as mãos e caminhar juntas.

Assim, a tecitura do texto imagético é marcante no percurso das suas personagens.

Nessa obra, as imagens contextualizadas – pela liberdade criativa do autor e livre interpretação do leitor – são protagonistas essenciais, porque realizam, também, movimentos próprios eivados de significados e beleza.

O vaivém entre Piquiazinho e Ilharga Grande, lugarejo e cidade do alto Solimões, Manaus e Rio de Janeiro imprimem a realidade e o imaginário de uma época que o Brasil passava por mudanças socioculturais marcantes e repercussivas às próximas gerações.

O fio do novelo dessa história é puxado no Rio de Janeiro, no meado de 1950, com os passos cautelosos e olhar atento de Inácio a novos ares.

Nascido em Piquiazinho, ele fora transferido da agência do Banco do Brasil em Ilharga Grande para uma congênere da então capital da República.

O narrador contextualiza, com elegância e leveza, situações intrínsecas à condição humana, ocorram elas na aldeia ou na metrópole, tais como: amizade, solidariedade, religiosidade, memória, sentimentos coletivos e individuais, desafios, superação, gratidão, amor, política, estilo de vida etc.

A trama de “Da vida e do viver” desenvolve-se a partir da realidade de famílias interioranas amazônicas que se deslocam para as cidades na esperança de estudar, empregar-se, “subir na vida” e constituir famílias. Ou simplesmente, sobreviver.

O protagonista Inácio, ainda criança, migra da vila Piquiazinho, lugarejo de Ilharga Grande, para Manaus, por meio do apadrinhamento do pastor Justino e sua mulher Esmeralda, com o objetivo latente de fazer companhia ao filho único do casal, Isaías, e estudar ao mesmo tempo.

Os meninos fizeram profícua amizade mediada pela obrigação escolar e pelas partidas de xadrez e futebol.

Quando já cursava a admissão, Inácio descobriu Joaquim, um dos irmãos da sua mãe, Maria, também “entregue” a uma família da capital quando ainda criança.

O tio e sua mulher Silvia abrigaram, mais tarde, o jovem sobrinho, que deixou a amizade com a família do pastor intacta.

Desse modo, o narrador põe em evidência gerações de crianças pobres dadas a famílias mais aquinhoadas, para serem “criadas como se fossem da família”. Não obstante, transformavam-se, geralmente, em mão de obra doméstica análoga à escravidão. Esse, felizmente, não é o caso de Inácio.

Agregado familiar disciplinado e estudante inteligente, Inácio ampliou sua rede de amizade e solidariedade, que o sustentou material e espiritualmente.

Entre as pessoas com as quais manteve uma relação de afeto duradoura se destacam Paulo, funcionário público e curioso técnico de futebol, Joaquim e Sílvia, seus tios, Claúdio e Barbosa, representantes comerciais.

Enquanto estudava, o jovem trabalhou como ajudante de mecanógrafo (técnico de manutenção de máquina datilográfica) e office boy.

Os trajetos, a arquitetura, equipamentos urbanos e o estilo de vida de Manaus daquela época foram captados pela sensibilidade do narrador e transportadas para a imortalidade.

Assim, o leitor(a) pode estabelecer relação entre a Manaus antiga e a Manaus de hoje, sem lhe tirar o poder imaginativo.

Por meio de concurso público, Inácio conquistou uma função técnica no Banco do Brasil e trabalhou nas agências de Ilharga Grande e Rio de Janeiro.

Trata-se do percurso de uma vida eivada de situações que definem uma personagem cautelosa e determinada a atingir seus objetivos pessoais e familiares. Afinal, não fora fácil, àquela altura, tornar-se funcionário concursado do banco mais seguro e importante do país, e ainda gozar da fama de pertencer a uma categoria privilegiada de trabalhadores.

Do jeito que conduziu o enredo em terras amazônica, com cenas e cenários exuberantes em natureza e perturbadores em condição de vida, o narrador capricha na apresentação do miolo boêmio do Rio de Janeiro, imediações do lugar de trabalho do protagonista. Ali, respirava-se os ares da capital econômica, cultural e política do país.

“Observador contumaz”, o bancário é testemunha ocular da história e do tempo da sociedade em que viveu aqui agora. Por isso, quem lê “Da vida e do viver” tem acesso à música, ao futebol, ao teatro, à ebulição política e social, e ao surgimento de costumes e ao glamour da vida carioca das décadas de 50 e começo da de 60.

A partir de 1964, com o golpe econômico-militar, agitam-se os movimentos de trabalhadores, estudantes, políticos de esquerda e intelectuais em luta por políticas por liberdade individual e coletiva e contra o regime militar. Lá, estava o filho de Piquiazinho no olho do furacão.

A vigilância sistemática, a censura aos meios de comunicação e a repressão aos opositores do regime militar, nos seus momentos mais cruciais, cruzaram com a vida do bancário e estudante do curso de economia, que não perdeu o ânimo fazer carreira bancária.

Copacabana, largo do Botafogo e aterro do Flamengo são palcos das andanças de Inácio que, mesmo consumido pelos deveres da profissão, conseguia tempo para estudar, divertir-se, alimentar amores platônicos, enamorar-se e sonhar com uma companheira que, também, acolhesse seus pais, Petrônio e Maria, digna e confortavelmente.

Petrônio morreu em Manaus em consequência de infarto do miocárdio e foi sepultado em Ilharga Grande. Inácio não pôde se despedir pessoalmente do pai. A perda lhe atingiu na alma e no coração.

E tudo seguia como no script traçado por Inácio até que na travessia da avenida Atlântica, em um final de noite, ele e sua noiva Tetê foram atropelados por uma motocicleta. Ela e o motociclista morreram a caminho do hospital. Eles haviam comprado um apartamento e estavam prestes a casar.

Inácio retorna para Ilharga Grande com o propósito de se recuperar do trauma e esperar que o diagnóstico médico de que teria as pernas paralisadas não se confirmasse. Quem lhe faz companhia, desde o Rio, é Raimundinha, que alimentava pelo paciente uma paixão de adolescente, surgida nas brincadeiras juninas em Piquazinho.

É nesse retorno que o narrador e Inácio se encontram, protagonizando uma cena rápida, porém, memorável.

Mas, esse não é o fim. Trata-se, talvez, de uma das saídas das várias entradas que a narrativa oferece ao leitor(a). Nas peles do narrador e de Inácio, Damasceno entrega ao leitor(a) uma história na qual as adversidades se apresentam como elas são.

Aqui, o ficcional e o real pactuaram a inseparabilidade.

Perfil do escritor

Luiz de Gonzaga Damasceno Rodrigues nasceu em Manaus em novembro de 1946. É graduado em economia pela Universidade Federal do Amazonas e por 30 anos foi funcionário do Banco do Brasil, onde se aposentou.

Foi professor de língua portuguesa para alunos de ensino médio e de economia na Faculdade de Economia da Ufam.

Leitor habitual, apreciador de música, sobretudo a brasileira, cinéfilo, Luiz Damasceno se aventurou no mundo da escrita para deixar registradas as muitas histórias que ouviu ao longo da vida.

É autor dos livros:

  • “Razão e coração” (memória de família)
  • “Da vida e do viver: quase eu” (memória de época)
  • “Anjos da passagem” (novela, ficção)

Foto: Wilson Nogueira/especial para o BNC Amazonas