Mitologia Desãna é destacada em roda de conversa em Manaus

Artistas indígenas destacam influência da ancestralidade Desãna. Na foto, cerimonial de indígenas Desâna, em São Gabriel da Cachoeira, em 2008

Ato cerimonial de indígenas Desâna, em São Gabriel da Cachoeira, em 2018 Arquivo Wilson Nogueira

Neuton Correa, por Wilson Nogueira

Publicado em: 22/04/2025 às 05:27 | Atualizado em: 22/04/2025 às 07:25

Umúsin Panlõn Kumi e Tolamãn Kenhíri, xamãs do povo Desâna (Ümükomahsã, Gente do Universo), autores de Antes o mundo não existia (Valer), foram reverenciados em Manaus como iluminados por seus ancestrais que criaram o mundo.

O livro, o primeiro de autoria indígena no Brasil, foi tema da Roda de Conversas da Valer Teatro (Largo de São Sebastião), nesse sábado.

Os autores são mais conhecidos pelos nomes cristãos Firmino Arantes Gama e Luís Gomes Lana respectivamente.

Tolamãn Kenhíri morreu aos 77 anos, no último dia 22 de março, no Hospital de Guarnição do Exército em São Gabriel da Cachoeira (AM). Ele é filho de Umúsin Panlõn Kumi, liderança ancestral da comunidade São João Batista, na margem direita do rio Tiquié, no alto rio Negro.

No centro da roda estavam o escritor Ytanajé Cardoso, do povo munduruku, o artista visual Paulo Desãna e a artista visual Duhigó Tucano, do povo tucano.

Ytanajé, Duhigó e Paulo

Do Rio de Janeiro ao rio Negro

Antes o mundo não existia narra a viagem dos ancestrais Desãna desde à Maloca do Lago de Leite (hoje Rio de Janeiro) até ao profundo alto Negro, onde estão hoje 23 povos sobreviventes do chamado processo civilizatório.

O livro começou a ser escrito em 1968. A publicação da primeira edição aconteceu em 1980 (Livraria Cultura). Houve a mediação da antropóloga Bertha Ribeiro (1924-1997), do linguista Casemiro Beksta (1923-2015) e do escritor e dramaturgo Márcio Souza (1946-2024). A segunda, em 1995 (Foirn/ISA). A terceira, em 2019 (Dantes Editora), e a quarta em 2021 (Valer).

Firmino e Luiz foram os primeiros indígenas do Brasil a ter a luz e a coragem de eternizar o mito do seu povo em um livro”, sustentou Ytanajé. Ele é do povo munduruku do Amazonas.

Os não índios

Os mitos indígenas até então eram escritos por não índios, geralmente religiosos, viajantes e pesquisadores acadêmicos.

Os não brancos, como reforça Ytanajajé, sempre entenderam os mitos indígenas como se fossem lendas, termo carregado de preconceito eurocêntrico. Para ele, a obra “dos Lana” contrapõe-se, em nível da organização do pensamento, ao mito cristão-judaico de criação do mundo, usado pelo colonizador europeu para apagar os modos de pensar e agir dos povos indígenas.

“O povo desãnas não tem a perspectiva de um criador do gênero masculino. Tem, sim, a figura de uma criadora, Yebá Bëló, uma grande avó do mundo. Quando refleti sob essa perspectiva, que já achava diferente, porque na cultura munduruku também é muito forte a tradição cristã, lembrei da minha avó, Ester Cardoso ((1919-2003), cuja memória continua entre nós”.

Ytanajé Cardoso, escritor

Ester foi a última falante da língua munduruku e era conhecedora da ancestralidade do seu povo, para o qual era referência de conhecimento e sabedoria. Ytanajé informou que fez um documentário com os depoimentos de anciãs, entre elas está a sua avó Ester.

“Quando documentava as minhas avós, eu sempre tinha o Mundo não existia ao meu lado. Isso porque Lana e Firmino fizeram o mesmo trajeto que fiz depois. Para mim, eles foram uma inspiração. Firmino e Luiz perceberam que a única maneira de continuar vivendo em sua cultura é a de colocar o pensamento deles no papel”, comentou Ytanajé.

Ytanajé explica que, no primeiro momento, ainda na graduação – ele é doutor em educação escolar pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) –, não deu a devida importância à obra “dos Lana”. Contudo, ela lhe foi chamando a atenção na medida que percebeu que o universo, no qual atuava, não era único. Era tão somente o universo cristão porque o povo munduruku, em sua maioria cristão, também tem o seu mundo ancestral.

“Antes o mundo não existia me direcionou para a importância da diversidade cosmológica e das diversas maneiras de pensar no Brasil. Isso, para mim, foi importante e mudou a minha vida, porque comecei a escrever a história do povo munduruku”,.

acentuou Ytanajé

Ytanajé é autor do livro Canumã: a travessia (Valer), o primeiro romance escrito por indígena no Brasil.

Cobra-canoa

Paulo Desãna, fotógrafo, cinegrafista e diretor de cinema com obras circulando em Portugal, Espanha, Alemanha, Paris e cidades brasileiras, assinalou que conviveu mais com Feliciano Lana (1937-2020), primo de Luiz Lana, desenhista de mitos dos povos do alto rio Negro.

“Eu ia à casa do Feliciano e ele me mostrava suas pinturas e me contava histórias dos nossos ancestrais”, afirma Paulo.

Assim, ele acentua que sempre esteve, também, em contato com Luiz Lana e sua sabedoria ancestral.

A influência de Antes o mundo não existia sobre as telas e outras obras de Paulo são marcantes, segundo ele mesmo: “A mitologia da Cobra-Canoa de Transformação é a base do meu trabalho. É da Cobra-Canoa que saem, o pajé, o artesão e a artesã, a dona de casa, o benzedor e a benzedeira, as parteiras e todos os ancestrais dos povos indígenas contemporâneos”, explicou Paulo.

Foi por intermédio da obra “dos Lana” que ele tomou conhecimento da existência do Deus da escrita e das artes do povo Desãna, o ancestral Yebá-gõãmi.

Dura caminhada

Duhigo Tucano, também é artista visual com obras reconhecidas internacionalmente. No Brasil, ela tem telas que fazem parte do acervo do Museu de Artes de São Paulo (Masp).

Mas contou à plateia que fez uma longa caminhada desde a casa dos seus pais e parentes, no rio Yauaretê, onde não se assujeitou à escola dos padres e freiras, até as cidades dos brancos. Por isso, não escreve, mas apreendeu português “falando” e nunca esqueceu a língua materna com a qual se comunica com os seus parentes até hoje.

Em Manaus, Duhigó contou que sempre trabalhou em casa de família, em jornada, de segunda-feira a sábado, que começava às 5h e só se encerrava às 21h. Nessa época, ela estava com sete filhos ainda pequenos.

“Não tive tempo de educar meus filhos. E quando não educamos nossos filhos eles ficam meio rebeldes. Foi o que aconteceu comigo”, afirmou.

Ela entrou para Escola de Artes Instituto Dilson Costa atraída por uma bolsa de estudo que, no final das contas, não atendia às necessidades da sua família. Mas entre idas e vindas, decidiu persistir na formação que lhe rendeu a carreira de artista visual indígena reconhecida em várias partes do mundo.

A sua pintura regista as lembranças das paisagens e do cotidiano do seu povo, que resiste no rio Yauretê.

Ela revelou que, quando está desenhando, sente a presença do que é desenhado. Para Paulo, o que Duhigo sente é, certamente, a presença dos espíritos ancestrais lhe inspirando.

Exposição

Paulo Muduruku e Duhigó Tucano estão com obras na Exposição Poranduba Amazonense, na Galeria de Artes da Valer Teatro.

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Fotos: Wilson Nogueira