O sensível e indomável Inaldo Medeiros

Compositor icônico do boi bumbá, Inaldo Medeiros deixa um legado de toadas marcantes e um coração apaixonado pela cultura de Parintins.

Adrissia Pinheiro, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 18/03/2025 às 10:05 | Atualizado em: 18/03/2025 às 11:56

Apenas dois dias após a partida de uma das veias principais do coração vermelho e branco, o mestre Jair Mendes, o boi bumbá se despede de um daqueles que fazem os corações encarnados baterem mais forte.

Inaldo Medeiros, 62 anos, compositor do Garantido, faleceu na manhã do dia 17 de março, ironicamente, do coração.

Filho de mãe paraibana e pai parintinense, Inaldo e mais sete irmãos, nasceram na comunidade do Miriti, zona rural de Parintins.

Cresceu na rua Paes de Andrade, no centro, reduto do boi Caprichoso. Mas, ainda menino, ele e o irmão, também compositor, Tony Medeiros, foram convertidos. E coração de Inaldo foi vermelho pelo resto de sua vida, levando toda sua família pelo caminho que leva para a Baixa.

Inaldo Medeiros é considerado um dos mais sensíveis compositores de boi, com melodias que tocam corações vermelhos e azuis. Ao mesmo tempo, era considerado um defensor mordaz de suas composições.

Era mais reservado em sua vida pública. Em 2022, participou da série Toada Cantada, em que narra, ao lado do irmão, sua caminhada no mundo da composição.

Direto da fonte

Inaldo Medeiros faz parte dos ponteiros que puxam a segunda geração de compositores do boi bumbá Garantido. Inaldo, seu irmão Tony Medeiros e Emerson Maia eram meninos, por volta de quinze anos, quando passaram a conviver com a geração seminal dos poetas da Baixa.

Tony resume essa experiência com a expressão: “nós bebemos direto da fonte”. A fonte eram mestre Lindolfo Monteverde, o fundador, e outros versadores como Vavazinho, Ambrósio, João Batista Monteverde, Braulino, Maximiano, Áureo, Nelson Baixinho, entre outros. Muitos deles, com mais de 60 anos.

Nessa época, a toada era outra, feita com voz e batucada. Os versos possuíam de duas a quatro estrofes, sem refrão. “Na verdade, naquele tempo, quatro versos, quatro, cinco serrinhas, davam uma toada, era assim que era”, conta Inaldo.

Voz e batucada

A primeira toada de Inaldo Medeiros incluída em um festival folclórico de Parintins teria acontecido em 1987. É de um formato em que as toadas não possuíam um nome próprio, pois eram versos:

“Desperta morena bela, desperta morena bela
Quem bate a tua janela sou eu
Cheguei pra fazer o meu povo cantar
Cheguei pra fazer o meu boi balançar
Balança boi Garantido
Balança touro querido
Balança pro meu coração balançar”

Também não haviam álbuns gravados. As toadas eram divulgadas ao público por meio de folhetos com as letras. O primeiro álbum de toadas de boi bumbá foi gravado em formato LP, apenas em 1989, com Garantido Eterno campeão.

Esses versos de Inaldo foram gravados no álbum de toadas antológicas do Boi Garantido, Toadas de todos os tempos, vol. 2, em 2001.

Tony Medeiros havia emplacado sua primeira toada oficial, em 1986. Em seguida, os dois estabeleceriam uma parceria que transformaria a toada de boi bumbá.

Batucada e violão

“Já naquele tempo também tinha ciumeira. Imagina: dois meninos novos aparecerem [com novidades]…Porque existia a fórmula antiga, né?”, disse Inaldo.

A chegada do novo foi uma conquista paciente ante os mais antigos. Em 1989, o andamento da toada Morena bela, de Inaldo, Tony e Paulinho Du Sagrado, por exemplo, já era considerado acelerado para a época.

“Morena bela eu vim te avisar
Garantido acabou de chegar
Venha comigo pular fogueira
Vem brincar de boi-bumbá”

Inaldo, Tony, Emerson Maia, Chico da Silva e, em seguida, Paulinho Du Sagrado seriam os ponteiros do que se considera a toda moderna do lado vermelho, com a introdução do violão na melodia.

E ao inserir a temática indígena que, puxou uma linha dedicada especialmente aos itens de boi bumbá defendidos na arena do bumbódromo, inaugurado em 1988.

Os irmãos Medeiros têm uma coleção de toadas com temáticas indígenas. Porém, a primeira toada de exaltação de um item de arena feita pelos dois, teria sido Vaqueirada, em 1996, um dos maiores clássicos do boi de Parintins.

A temática indígena

Inaldo e Tony Medeiros, ao lado de Paulinho Du Sagrado, participaram do IV festival da canção de Parintins, em 1985. Eles elegem a toada Cantiga tropical, defendida por eles, como sendo a primeira a abordar a temática indígena no gênero.

A toada é a versão musicada de um poema de um tio dos Medeiros, o escritor Luís Soares Medeiros, que fala sobre os massacres indígenas nos primeiros embates da colonização na região de Manaus. No entanto, a novidade não era ponto pacífico.

“Você sabe o que que diziam? Diziam que música de índio não era música de boi só pra você ter uma ideia. Tá pensando que foi fácil?”, disse Tony.

Uma curiosidade sobre a linha indígena do repertório dos irmãos é que a toada Filhos do Sol, do álbum de 1991 do boi Garantido, teria sido o primeiro sucesso nacional da banda Carrapicho, que a regravou em 1994.

A toada é uma exaltação a vários povos indígenas que já faziam da Amazônia sua pátria, antes dos colonizadores. E teria colocado a banda Carrapicho no circuito sudestino, antes mesmo de Tic tic tac (Braulino Lima, 1993), regravada pela banda em 1996.

Outra toada icônica dessa linha é de 1994. Hachimu quer viver denunciava a chacina na aldeia yanomami Hachimu ocorrida um ano antes, quando 12 indígenas foram assassinados por garimpeiros.

Afinal, a temática indígena se transformou em um dos grandes diferenciais do festival folclórico de Parintins.

O indomável

Embora compositor de uma sensibilidade ímpar, Inaldo era conhecido também por ser indomável na defesa de suas composições.

Ele conta que recebeu fortes críticas na seleção de toadas do Garantido em 1996 por conta de uma toada. Raul Góes fora o encarregado de contar que ele teria que retirar uma de suas composições, pois possuía uma sensualidade incomum até aquele momento.

Raul teria dito: “Você tem direito a escolher a toada que você quiser colocar no boi, mas essa aí a gente não vai colocar, porque os músicos se reuniram e disseram que a toada vai comprometer o CD”.

Inaldo defendeu ferrenhamente sua toada afirmando que não a tiraria, que eram os músicos que iriam comprometer sua toada, ou a toada entrava, ou nenhuma outra entraria. A toada era Um canto novo. Foi gravada no álbum de 1996 e é um dos clássicos do boi bumbá.

Versatilidade

Inaldo tinha o toque de Midas para as toadas. Além da parceria com o irmão Tony, ele tinha outros parceiros. Também com eles, as composições se transformaram em clássicos.

Alguns exemplos são: Dança das Lanças, com Edval Machado e Paulinho Medeiros; Boi de Pano e Coração de batuqueiro, com Marcos Lima; Minha sina, com Osmael Alfaia; Rosa vermelha, com Edilson Santana; Naiá, com Liduína Mendes; e tantas outras.

Era um compositor versátil, imprimindo vários estilos dentro do gênero, entre toadas que falavam de amor, de galera, dos itens. É um artesão de grandes sucessos.

Teve a generosidade de semear dois talentosos compositores, seus filhos, Gaspar e Caetano Medeiros, um de cada cor.

Inaldo Medeiros foi para o céu avermelhado do seu boi bumbá, aquele onde não há estrelas, mas pôr do sol avermelhado eternamente.

“Sou o poema de encanto que brota da alma cabocla
Sou a toada que canta contando a história
Sou povo, sou sangue, sou crença, sou raça, sou glória”

*A autora é antropóloga.

Ilustração: Gilmal