Cirurgia histórica marca nova fase de 1ª dentista trans do Amazonas

Emy Rigonatty fez cirurgia de redesignação sexual pelo SUS e pode se tornar a primeira dentista trans do Amazonas, em um marco para a saúde pública.

Diamantino Junior

Publicado em: 29/01/2025 às 12:32 | Atualizado em: 29/01/2025 às 12:39

A estudante de odontologia Emy Rigonatty, 26 anos, deu um passo fundamental em sua trajetória pessoal e profissional ao realizar, em agosto do último ano, a cirurgia de redesignação sexual. O procedimento, realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em um mutirão com 22 pacientes, marca um avanço inédito no Amazonas e simboliza uma conquista para a população trans e intersexo do estado. Com a cirurgia, Emy está a caminho de se tornar, até 2027, a primeira dentista transexual do estado.

Marco na saúde pública do Amazonas

Emy foi uma das 22 pessoas contempladas pelo mutirão de cirurgias realizado entre 27 e 31 de agosto pelo Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV-UFAM) e o Ministério da Saúde, com apoio da Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares) e da Sociedade Brasileira de Urologia.

O evento foi um marco na saúde pública do Amazonas, já que o estado não conta com um centro de referência para cirurgias de redesignação sexual.

A estudante celebrou a oportunidade, destacando o ineditismo do procedimento no estado e a dificuldade de acesso ao serviço pelo SUS.

“Nunca houve esse tipo de cirurgia em pessoas trans e intersexo no estado, e eu fui uma das escolhidas, dentre centenas de meninas que estavam à espera. Sou imensamente grata por essa oportunidade”, afirmou Emy, que enfrentou desafios durante sua transição, incluindo discriminação acadêmica e o uso irregular de hormônios.

Demanda reprimida e desafios estruturais

De acordo com os organizadores, a demanda por esse tipo de procedimento no Amazonas e na região Norte sempre foi alta, mas a ausência de um centro especializado levou muitos pacientes a solicitarem tratamento fora do estado, acarretando custos extras e riscos no pós-operatório.

Conceição Crozara, mastologista e chefe da divisão médica do HUGV/Ebserh, destacou que a demanda foi identificada inicialmente por meio da telemedicina, revelando a realidade de muitas pessoas intersexo e trans que precisavam do procedimento.

“Eu não sabia que existiam tantas pessoas carecendo dessas cirurgias, e ninguém sabia, porque é uma lista invisível”, afirmou, referindo-se à vulnerabilidade da população LGBTQIA+ na região.

Os pacientes beneficiados pelo mutirão já eram acompanhados pelo Ambulatório de Diversidade Sexual e de Gêneros da Policlínica Codajás, onde recebem atendimento multiprofissional com ginecologistas, psicólogos, psiquiatras e fonoaudiólogos, entre outros especialistas. O último levantamento apontou mais de 900 pacientes trans e intersexo em acompanhamento.

Capacitação e resistência social

Além das cirurgias, o evento promoveu capacitações para profissionais de saúde da região, visando deixar um legado de atendimento especializado no Amazonas.

O urologista e professor da UFBA, Ubirajara Barroso Jr., ressaltou que, diante da inexistência de centros credenciados na região, a fila de espera para os procedimentos era gigantesca.

“Esse evento foi o primeiro multiprofissional cirúrgico organizado para esse propósito no país”, afirmou.

Apesar da importância do mutirão, houve resistência de setores conservadores da sociedade amazonense, segundo a organização do evento.

Informações falsas circularam, alegando que as cirurgias estavam sendo feitas em detrimento de outros procedimentos eletivos. “Tivemos que quebrar esse imaginário”, destacou a médica Conceição Crozara.

Emy Rigonatty também apontou a falta de apoio do poder público local. “A prefeitura de Manaus não se posicionou em nada sobre isso. As pessoas buscaram os secretários de saúde e não houve ajuda para custear as cirurgias dos pacientes”, denunciou.

Esperança para o futuro

Isaac Lopes, 22 anos, presidente da Associação Transmasculina do Amazonas (Atam), celebrou o mutirão como um avanço para a população trans do estado.

Ele, que se identificou como homem trans aos 14 anos, sonhava com a cirurgia de mastectomia masculinizadora, mas temia não conseguir devido ao alto custo dos procedimentos no setor privado e às longas filas do SUS. “Teve um momento da minha vida em que duvidei que conseguiria. Esse evento trouxe esperança para muitas pessoas”, disse.

Para ele, ampliar o acesso à saúde da população trans e intersexo no Amazonas exige esforço conjunto entre movimentos sociais e profissionais da saúde.

“O Amazonas é um estado muito transfóbico. Se o poder público não garante essas oportunidades, cabe à sociedade civil se mobilizar para garantir nossos direitos”, concluiu.

A experiência vivida por Emy Rigonatty reforça a importância da luta por políticas públicas inclusivas e abre caminho para que outras pessoas trans no estado tenham acesso a procedimentos que garantam sua dignidade e bem-estar. Até 2027, ela planeja concluir sua formação em odontologia e se tornar a primeira dentista trans do Amazonas, representando uma conquista pessoal e coletiva.

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Foto: redes sociais