Karl Marx: um determinista econômico?
Neste artigo do sociólogo Lisandro Braga, a crítica à ideia de Marx como um determinista econômico é desconstruída, destacando a complexidade de sua análise da realidade social

Adrissia Pinheiro, por Lisandro Braga*
Publicado em: 24/01/2025 às 11:09 | Atualizado em: 24/01/2025 às 11:09
É comum ouvir nas aulas de Ciências Sociais em universidades, institutos de ensino e pesquisa, e programas de pós-graduação, que o marxismo é uma teoria do século XIX, considerada incapaz de explicar as novas realidades, surgidas a partir do século XX.
Alguns chegam a afirmar que se trata de um pensamento doutrinário, ultrapassado e destinado ao esquecimento, outros, no máximo, aceitam e recorrem ao “marxismo”, mas não sem antes torná-lo uma “camisa-de-força” acadêmica e burguesa (LOWY, 2014; BURAWOY, 2010; WRIGHT, 2019; BRAGA, 2012; BRAGA; 2023).
Uma das “críticas” mais recorrentes que milhares de sociólogos, cientistas políticos, historiadores e antropólogos apresentam à produção teórica de Karl Marx se baseia na alegação – confusa, infundada e não demonstrada – de que se trata de uma análise reducionista da realidade social, que vê na “estrutura econômica” a determinação central de toda e qualquer realidade social.
Contudo, buscaremos desconstruir essa pseudocrítica, demonstrando que não existe elementos presentes na obra de Karl Marx que permita afirmá-la como uma análise economicista da realidade social; pelo contrário, demonstraremos que tudo que sua análise sobre a questão revela é: ele nunca foi determinista.
Marx construiu uma teoria e um método de análise muito mais rico e complexo do que se imagina. E só existe uma maneira de fundamentarmos nosso argumento, ou seja, trazendo à tona a própria abordagem teórico-metodológica desenvolvida por Karl Marx sobre o tema.
Em outras palavras, buscaremos “matar a cobra e mostrar o pau”, e, assim, demonstramos também que, ao contrário das análises academicistas, que são falseadoras da verdadeira obra de Marx, aqui, teremos como base uma rigorosa análise da mesma.
Modo de produção e formas sociais
A discussão sobre o par-conceitual (base e superestrutura) em Marx se encontra no interior de determinadas análises em que esse não é o centro, o foco da discussão.
Primeiro, vale ressaltar, como o fez Althusser (1977), que Marx utilizou as expressões base e superestrutura, ao que tudo indica, uma única vez em sua obra, e quando utilizou o fez de forma ilustrativa e didático-teórica, a partir da metáfora do “edifício social”, quer dizer, da existência de um fundamento (modo de produção) expresso pela ideia da base, do térreo do edifício, como pré-condição para a existência dos demais andares (formas sociais privadas, políticas, jurídicas, culturais, ideológicas, religiosas, educacionais, repressivas etc.) que, uma vez constituídos, estabelecem correspondência entre si e a base.
Seguindo essa linguagem ilustrativa, nesse edifício existem elevadores que estabelecem correspondência, conectam, interligam, relacionam tanto o térreo com os demais andares quanto esses entre si. Mas, para que os demais andares existam, primeiro é necessário existir o térreo, uma base onde o edifício como um todo se fundamente.
Em uma de suas obras mais conhecidas e citadas, Prefácio à Crítica da Economia Política (1982), Marx resume sua concepção materialista da história:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, político e espiritual” (MARX, 1982, p. 24 e 25).
Nessa passagem, temos a primeira e única menção de Marx sobre a relação existente entre a estrutura econômica (modo de produção da vida) e a superestrutura (formas sociais). No entanto, aqui não se encontra uma definição minudenciada sobre o modo de produção nem tampouco sobre a superestrutura. E, sem dúvida, essa ausência contribuiu para diversas polêmicas e interpretações problemáticas sobre a dinâmica relacional existente nesse par-conceitual.
Análises apressadas
O predomínio das interpretações apressadas, economicistas, e, por que não desonestas – sem falar daquelas tantas que sequer passaram pela produção teórica de Karl Marx – pouco contribuiu com o desenvolvimento dessa discussão, visto que menosprezavam o papel da superestrutura (formas sociais) como uma das múltiplas determinações da realidade histórico-social, tal como realmente Marx afirma: “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 1982, p. 14).
Uma análise cuidadosa do longo trecho supra citado, especialmente nos trechos negritados, pode oferecer insights valiosos sobre o método dialético marxista de compreender a dinâmica social. Diferentemente das interpretações economicistas e das críticas que elas suscitaram – Raymond Aron, em As etapas do pensamento sociológico (1987) –, o que se revela é uma dinâmica complexa, e não um determinismo econômico simplista.
Marx enfatiza que, na produção social da existência, os seres humanos estabelecem determinadas relações sociais de produção – isto é, um modo específico e historicamente determinado de produzir as condições necessárias para a vida social. Essas relações possuem correspondência e reciprocidade com o desenvolvimento histórico das forças e capacidades produtivas, incluindo a força de trabalho, a maquinaria e o avanço tecnológico.
O conjunto das forças produtivas, ou seja, a capacidade de determinada sociedade produzir constitui o fundamento (base) da sociedade, aquilo que na obra A ideologia alemã (Marx e Engels, 1984) ele já destacava como o modo de (produzir a) vida social em determinada sociedade. E que esse modo de produção condiciona a forma como a sociedade desenvolve suas formas sociais (políticas, culturais, intelectuais etc.).
Por exemplo, em uma sociedade, como a capitalista, que depende do consumo de mercadorias para seguir existindo, deve predominar um comportamento consumista, pois, se nessa sociedade predominasse a prática do desapego ao bem material, e se, ao menos os cristãos seguissem incondicionalmente o evangelho de Marcos (10: 17-30), sua reprodução estaria radicalmente comprometida.
Produção e reprodução
Portanto, o modo de produção capitalista deve determinar as condições sociais de estímulo ao consumo e ao fazê-lo garante que esse também determine a continuidade da sociedade capitalista em seu conjunto, a começar pelo próprio modo de produzir a si mesma. Em Carta a Joseph Bloch (21 de setembro de 1890), Engels afirma:
“Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante é, em última instância, a produção e reprodução da vida real. Portanto, se alguém distorce esta afirmação para dizer que o elemento econômico é o único determinante, transforma-a numa frase sem sentido, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas, e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos – exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma”. (Engels, 1987, p. 39 – grifo meu)
Neste trecho, Engels, alinhado com a perspectiva de Marx (1983a, 1997), esclarece a compreensão que ambos tinham sobre a relação entre modo de produção (entendido aqui como o elemento econômico, ou seja, a situação econômica) e formas sociais (reprodução).
Desde o início, ele é claro ao afirmar que o elemento determinante é a produção e a reprodução da vida real, rejeitando veementemente a acusação de economicismo, considerada absurda por aqueles que buscam entender a realidade social a partir da perspectiva materialista histórico-dialética.
Para Engels e Marx, tanto o modo de produção quanto as formas sociais se determinam mutuamente na dinâmica social. Contudo, para que as formas sociais se desenvolvam, elas precisam ter como base um modo de produção que lhes forneça sustentação, pois para os seres humanos (sociais) a produção material da vida é fundamental para a existência das estruturas sociais.
Condição fundamental
Em A Ideologia Alemã (1984), Marx afirma que “o primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda História, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. Mesmo quando o mundo sensível é reduzido ao mínimo, a um bastão, […] pressupõe a atividade da produção deste bastão”.
Em Teorías sobre la plusvalía (1980, p. 262), Marx e Engels ainda destacarão que, acima de tudo, essa relação é histórica, reserva uma especificidade própria em cada modo de produção e reprodução social. E não deixa de relevar que nessa relação o que existe é um intercâmbio entre esses:
“pois para entrar a considerar la conexión entre la producción espiritual y la material es necessário, ante todo, enfocar ésta, no como uma categoria general, sino bajo una forma histórica determinada. Al modo capitalista de producción corresponde otro tipo de producción espiritual que al modo de producción de la Edad Media. Y si no se enfoca bajo una forma histórica específica la misma producción material, resultará imposible captar lo que hay de determinado en la producción correspondiente a ella y compreender el intercambio entre una y outra”.
Nesse sentido, algumas leituras contemporâneas sobre o materialismo histórico dialético também buscaram reforçar essa compreensão da dinâmica social capitalista, demonstrando a inexistência de qualquer tipo de mecanicismo determinista nas análises de Karl Marx; pelo contrário, algumas foram perspicazes em enxergarem na obra de Marx uma introdução à teoria das formas sociais (Viana, 2017). Assim como leituras setentistas já demonstravam que a complexa análise de Marx representou “exatamente o oposto das explicações mecanicistas que a maioria dos amigos e inimigos de Karl Marx tomam por seu legado” (Harrington, em O crepúsculo do capitalismo, 1977).
No livro A consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético (2021), Nildo Viana fornece uma teoria das formas de regularização das relações sociais fundamentada minuciosamente nessa introdução à teoria das formas sociais de Marx.
De acordo com ela, devemos compreender que a utilização que Marx fez da metáfora do “edifício social” era ilustrativa e pedagógica, visando explicar sua forma de pensar (episteme) as relações sociais constitutivas das sociedades classistas pré-capitalista e capitalista: a sociedade dividida em dois elementos, um sendo a infraestrutura (base) e o outro a superestrutura, o primeiro condicionando o segundo, que se constitui tendo aquele como base.
Demonstrando também que o primeiro equivale ao modo de produção, conceito que foi desenvolvido, e o segundo às suas formas (sociais) jurídicas, políticas, culturais, ideológicas etc. sem, no entanto, apresentar um conceito claro para estas, o que sem dúvidas facilitou diversas incompreensões.
Considerações finais
Procuramos, neste breve texto, ser o mais didático possível, ao demonstrar que em Marx não existe nenhuma leitura determinista econômica da realidade. Pelo contrário, seu método investigativo aponta para a conclusão, segundo a qual, a realidade é síntese de múltiplas determinações, porém, o modo de produção é determinação fundamental das diversas formas sociais existentes, e essas, uma vez existindo, passam também a determinar, de certa forma, o modo de produção.
Poderíamos aqui perguntar qual seria então a razão de tão grande coro dos descontentes e ressentidos acadêmicos contra Marx e sua teoria, contudo, por causa do pouco espaço que temos aqui, a resposta deveria ser apresentada em outro texto.
*O autor é sociólogo e cientista político.
Ilustração: banco de imagens