O reconhecimento das majés

Projeto valoriza as práticas espirituais das mulheres indígenas e a importância política das benzedeiras e curandeiras na região amazônica.

Adrissia Pinheiro, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 18/01/2025 às 15:21 | Atualizado em: 18/01/2025 às 15:26

O projeto Majés do Baixo Tapajós e o dom de cura teve como fonte de inspiração a existência da majé Olinda dos Santos Tapuia, da região do Lago Grande, onde residem os descendentes do povo tapuia.

Hoje, o povo daquele lugar se encontra em uma retomada do reconhecimento de suas ancestralidades, tanto dos indígenas tapuias quanto do povo de quilombo daquele território.

O projeto foi fomentado pela Lei Paulo Gustavo de artes visuais e resultou em um livreto lançado em novembro de 2024, com o mesmo nome, “Majés do baixo Tapajós: o dom da cura”.

Patrícia Tapuia, autora do projeto, artista e neta da majé Olinda Tapuia, colocou no livro práticas espirituais de sua avó e de outras majés do baixo rio Tapajós.

As ilustrações do livro são tintas naturais extraídas de plantas e produtos medicinais que são também usadas como remédios.

A iniciativa busca levar para o centro da aldeia a importância política e espiritual das benzedeiras, puxadoras de ossos, ervateiras e parteiras proporcionando para elas um espaço de reconhecimento e de troca.

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O apagamento da majelança

Majé seria o feminino do termo pajé, comumente relacionado ao homem especialista de cura das sociedades indígenas.

O termo majé está sendo mencionado pelo movimento de mulheres indígenas desde 2022 para referir-se às especialistas de cura mulheres.

A adoção procura corrigir um equívoco do olhar do colonizador sobre os povos indígenas brasileiros.

Quando o homem colonizador olhou para os povos indígenas do Brasil, o fez com as lentes patriarcais próprias do mundo europeu. Por isso, buscou nos postos de lideranças apenas os homens, inclusive, a liderança espiritual.

Pois, nesse modo de ver, os homens são a força motriz do mundo.

No entanto, as mulheres indígenas sempre estiveram junto com os homens na sustentação do equilíbrio do mundo visível e invisível. Assim, sempre houve lideranças políticas e espirituais femininas.

Mulheres com conhecimentos sobre o mundo espiritual, desde a inquisição, nos séculos 17 e 18, foram vítimas de perseguição e condenação, física e social.

Tal modo de ver a espiritualidade das mulheres refletiu no modo como os colonizadores olharam e retrataram as especialistas de cura nas sociedades indígenas.

Desse modo, ao contar a história dos povos indígenas, o olhar europeu patriarcal ignorou a contribuição de mulheres e as crianças.

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Mulheres e crianças

Quem contou a história dos povos indígenas ignorou tanto a contribuição das mulheres quanto das crianças como importantes sujeitos políticos.

Isso porque, segundo a ótica patriarcal europeia, elas não são reconhecidas como agentes políticos naturais.

As crianças participam da vida política porque participam de toda a vida na aldeia.

Ao contrário do que ocorre em nossa sociedade, onde a criança é vista como um ser incompleto, incapaz e cresce apartada do mundo dos adultos.

Para as nações guaranis que vivem no Sul e Centro Oeste, as crianças são importantes agentes espirituais.

Para o povo pataxó da coroa vermelha, da Bahia, as crianças são as melhores vendedoras de artesanato e divulgadoras da cultura. E existe uma lista de outros exemplos.

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Liderança

O olhar patriarcal europeu descreveu os postos políticos e espirituais dos homens também a sua imagem e semelhança.

Desse modo, figuras como caciques e pajés foram retratadas como especiais e destacadas nessas sociedades, como se concentrassem tais forças em suas mãos e fossem representantes do topo da hierarquia do poder, a exemplo do que são os políticos e os médicos em nossa sociedade.

A antropologia, disciplina que estuda a cultura dos povos, contribuiu significativamente para isso.

Enquanto não existiram mulheres antropólogas em campo, pouco se considerou o universo da roça, da criança, do alimento, entre outros, como importantes aspectos da vida espiritual e política das sociedades indígenas.

Mas, já há algum tempo, a antropologia tem revisado a centralidade de figuras como caciques e pajés.

Como mencionado acima, os homens não os únicos e nem os mais importantes líderes espirituais e políticos dessas sociedades.

Xamãs

No que toca à espiritualidade, Esther Jean Langdon, antropóloga, defende que a figura do xamã é uma invenção dos antropólogos.

Nessas sociedades, a espiritualidade está presente em todos os aspectos da vida.

Assim, plantar, cuidar, colher, preparar os alimentos, comê-los, ao lado de quem, são atos cotidianos que envolvem sabedoria e manejo espiritual.

Nesse sentido, Esther defende que a interpretação do xamã como único especialista de cura é limitada.

Mulheres, crianças, velhos são igualmente importantes na convivência do mundo visível com a espiritualidade.

Por isso, o movimento de reconhecer as majés como especialistas de cura representa fazer jus ao que a espiritualidade significa para o mundo indígena em sua concretude.

*A autora é antropóloga.

Foto: divulgação/Israel Campos