Para onde vão os encantados da Amazônia quando o rio morre?

Neste artigo, a antropóloga Dassuem Nogueira diz: "quando o lugar onde vivem deixa de existir, os invisíveis vão embora. Nos deixam em desamparo".

Para onde vão os encantados da Amazônia quando o rio morre?

Dassuem Nogueira, da Redação do BNC Amazonas  

Publicado em: 07/01/2025 às 10:12 | Atualizado em: 07/01/2025 às 10:12

Segundo cosmologias caboclas e indígenas, as matas, os rios, as pedreiras, tudo que neles existe são muito além de recursos úteis. São vidas. Não só a que podemos ver e compreender por meio de nossa consciência; os invisíveis, os encantados e os ingerados são populações.

Bichos de todos os tamanhos são filhos de invisíveis, são duplos de encantados, são ingeração dos pajés. Nós compartilhamos com eles territórios.

Para onde vão essas populações de invisíveis quando os rios secam, quando as matas viram pasto, quando os rios são assassinados para que se retire deles o ouro, o diamante, a selenita e a bauxita?

Eles vão embora.

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Boa vizinhança

Nós, que vivemos na Amazônia, aprendemos que cada coisa tem um dono. Mesmo os que crescem e vivem nas cidades, em algum momento aprendem que se deve pedir licença por onde andar em uma mata, igarapé, areial ou pedreira.

Nos é ensinado que devemos pedir licença a certas árvores antes de lhes tirar os frutos; que não devemos olhar com admiração para andirobeira enquanto extraímos o óleo do seu tronco, para que ela não seque, pois essa é uma árvore muito tímida.

Aprendemos certas leis espirituais para obter o que precisamos dos seres invisíveis da mata sem ofendê-los, sem violentá-los. É preciso agradá-los, nos relacionando com eles, mesmo quando o que precisamos é “só” um bom banho de rio.

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Aprender o cuidado

Aprendemos que não se deve gritar em penhascos, pois neles vivem seres que gostam de silêncio.

Não se deve maltratar animais, especialmente, os filhotes.

Não se deve entrar menstruada no rio ao meio-dia e à meia-noite, para não atrair a gente que vive no fundo.

Quando a gente se perde nos caminhos da mata, precisa agradar o curupira com tabaco e um nó feito com alguma coisa. Assim, ele se distrai e nos deixa seguir o rumo certo. Ele nos ensina a cuidar dos caminhos.

A mãe do corpo é a nossa força vital, ela fica por trás da cicatriz umbilical. Ela se ofende com exageros, bebida ou comida demais, um baque.

Quando ela se ofende, ficamos perturbados, adoecidos e com dor abdominal. Ela nos ensina a cuidar do nosso corpo.

Tudo na mata precisa ser cuidado. E nós, gente humana que vive entre outras vidas (peixes, curupiras, andirobeiras), aprendemos (ou deveríamos aprender) como cuidar para também sermos cuidados pelos outros.

Viver nunca foi fácil e precisamos uns dos outros para seguir vivos.

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Desencanto

Quando o lugar onde vivem deixa de existir, os invisíveis vão embora. Nos deixam em desamparo.

Ficamos desamparados, primeiro, porque então não teremos mais “recursos” fundamentais a vida de nossos corpos.

Segundo porque, ao nos concentrarmos, unicamente, em nossas próprias necessidades individuais, ficamos insensíveis ao mundo ao redor.

Deixamos de nos relacionar com os invisíveis e de lhes considerar como entidades da vida ao redor. Deixamos de cuidar deles e eles deixam de cuidar de nós.

É como na toada de Simão Assayag, “Amazônia catedral verde”:

“O curupira fugiu
Jurupari desistiu
Surucucu se escondeu
Cobra grande, cobra grande
Na enchente encolheu”.

Foto: Projeto Igarapés/Divulgação