Pará: carvão, cachaça e sangue

Neste artigo, Thiago Timo aborda transformação da floresta e a destruição de tradições e modos de vida. Leia o que diz o biólogo.

Pará: carvão, cachaça e sangue

Ednilson Maciel, por Thiago Timo*

Publicado em: 18/11/2024 às 10:04 | Atualizado em: 18/11/2024 às 10:04

Uma coisa que se prende com grande facilidade à minha memória são os sons, barulhos, músicas, vozes e sotaques, cantos de aves de lugares que visito. Não que eu busque ativamente lembrar deles, mas, involuntariamente, imprimem uma paisagem sonora que revisito, claro, distorcida pela minha cognição, toda vez que me lembro dessa ou daquela viagem e de algum lugar onde já morei.

Com aromas, sou menos sensível, ainda que não completamente; tenho mais dificuldade em lembrar deles. Mesmo assim, alguns me remetem a pessoas, fatos e momentos muito específicos. Um exemplo é um perfume antigo, chamado “Madeiras do Oriente”, que vinha com uma lasquinha de uma madeira nobre no frasco. Minha avó materna o usava, e quando sonho com ela, sinto o perfume.

Outro aroma é o da defesa química dos opiliões, quelicerados que vivem nas folhas e folhiço da Mata Atlântica, que me remete ao PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira) e às suas cavernas, bem como o cheiro pesado da decomposição de folhas da floresta de terra-firme da Amazônia.

As duas florestas, Atlântica e Amazônica, têm perfumes muito diferentes para mim. Seus sons também me são muito diferentes. A Amazônia tem um fri-frió cantando ao fundo, em dueto com araras e papagaios, tucanos variados e anhumas. A Mata Atlântica, que tenho frequentado, tem arapongas e saíras, tangarás e araçaris.

Estou, neste ano, participando de um projeto interessantíssimo que abrange Cerrado, Amazônia e Mata Atlântica. Estive já no Cerrado e na Amazônia, em breve irei à Mata Atlântica de Tabuleiro, na Bahia e, muito possivelmente, minha percepção sobre esse bioma vai se expandir.

Revisitando a memória

Mas, por ora, gostaria de rever a memória da minha última campanha de coleta de dados, entre o Maranhão e o Pará, em termos sensoriais e, compartilhar essas sensações e algumas reflexões com o(a) leitor(a). Desde já, me desculpo pela superficialidade e subjetividade. Mas, vou fazer uso dessa rara liberdade aqui, espaço e momento em que me encontro livre das paredes limitantes do texto acadêmico.

A convite do amigo Aldenor Ferreira, escrevo estas linhas com imenso prazer, e trago, de forma imprecisa, já que, meio intencionalmente, misturo os matizes da percepção objetivamente cognitiva e da percepção meramente sensorial.

Uma peculiaridade dos trabalhos de que tenho participado recentemente é o uso de atrativos para a captura de moscas das quais é extraído o DNA ambiental para identificação de mamíferos, no nosso caso. Uma colega é responsável por nos apresentar essa inovação e por nos treinar, orientar e assessorar excelentemente na tarefa de preparar, instalar e desinstalar as armadilhas de moscas.

Na campanha do Cerrado, usamos carne podre como isca, agora, na Amazônia, foi peixe podre. Sem a intenção de comparar os aromas, posso dizer que a fase inicial dessas campanhas tem um aroma bem específico.

Os carros que usamos para acessar os locais de coleta, e em todos e quaisquer deslocamentos, ficam com um perfume necrótico que vai aumentando de intensidade e chega a beirar o insuportável, felizmente, apenas nas vésperas do fim dessa tarefa.

A partir dessa etapa do trabalho, quando não mais estamos às voltas com iscas, começo a perceber de forma mais consistente os aromas que nos cercam. Como dito anteriormente, sou mais sensível ao som do que aos cheiros, mas não deixo de perceber os últimos.

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Os sons

No quesito sonoro, me encantaram as cigarras, com um canto bem diferente das que ouvi em Corumbá enquanto morei por lá há dois anos. São bastante diferentes da nossa Carineta sp., espécie comum no estado de São Paulo. Gravei a cantoria delas e enviei para um amigo muito querido que as estuda na Universidade Federal de Goiás. Ouvimos um tucano de peito branco, Ramphastos tucanus, araras vermelhas e canindés, anhumas.

Eu ouvi e identifiquei, em um aplicativo que usa IA para reconhecer as aves pelo canto, algumas espécies que não tinha registrado. Muito interessante foi o bem-te-vi-pirata! O canto é um “bem-te-vi” acelerado! Mas, também ouvi o uirapuruzinho, a maria-cavaleira-pequena, a maria-pechin, o bentevizinho-de-asa-ferrugínea (duvido que ele seja chamado assim por lá…), o garrinchão-pai-avô e a maria-te-viu.

Foi o que meu aplicativo identificou nos momentos em que tive a ousadia de parar um pouco para gravar os cantos. Muitos passaram batido, por ignorância da IA e por falta de tempo. É um trabalho intenso.

Como dá para perceber, no quesito cantos de aves, a campanha foi muito agradável e repleta de novidades! Outros sons menos agradáveis também se juntaram para formar uma nova paisagem sonora amazônica que até então eu não conhecia tão bem.

Máquinas trabalhando para juntar os resquícios da madeira derrubada para ser queimada, claro, da limpeza de áreas já exploradas; caminhões carregando toras vindo de locais onde a mata ainda rende boa madeira, o crepitar de árvores e folhiço seco pela estiagem prolongada queimando para dar lugar à soja.

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Cheiro de carvão

Os focos de queimada estão por toda parte, as florestas mais maduras têm sinais de exploração madeireira e, em breve, quando tiverem sido completamente exploradas para esse recurso, serão derrubadas e queimadas, dando seus últimos estalos em carvoarias que se espalham pelas margens das áreas ainda florestadas.

Esses novos sons vêm acompanhados de novos aromas também. Onde antes se sentia o cheiro adocicado da decomposição de frutos de palmeiras no chão da floresta, misturado com o cheiro acre da serrapilheira e dos troncos que caem naturalmente na floresta madura, sente-se agora o cheiro de carvão e cinzas, de poeira solta e abundante que invade as narinas, os olhos, ouvidos e se deposita sobre tudo. Onde estava a mata, está a monocultura de grãos, sem plantio direto, limpa, deixando a terra exposta ao vento seco e quente.

Sem chuvas consistentes desde maio, a paisagem é distópica. Com os caminhões e caminhonetes correndo alucinada e inconsequentemente pela “poaca”, termo local para a mistura de areia e saibro que cobre as estradas e suas margens (incluindo vegetação, animais e transeuntes), me sinto por vezes em uma cena de Mad Max.

Não darei destaque ao cheiro de esgoto que grassa em algumas cidades da região onde ele corre a céu aberto. O saneamento, obviamente, não é prioridade para a classe política e dominante. Mas isso mereceria uma crônica exclusiva.

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Cachaça e sangue

Foi um outro aroma, ou melhor, a combinação de três aromas que definiu, de forma muito marcante, a experiência sensorial que o atual estado de coisas na região imprimiu na minha memória. Ao final de um dia de trabalho muito intenso e longo, eu e uma assistente de campo demos carona a um homem baleado e seu colega que o acompanhava.

Detalhes e circunstâncias à parte, o cheiro que invadiu o carro era um misto de carvão (eles trabalhavam em uma carvoaria), cachaça (era noitinha de um domingo) e sangue (o homem estava baleado, friso).

Omito propositalmente os detalhes, mas asseguro que o motivo relatado para a agressão sofrida foi banal, resultado (muito provavelmente) da convivência forçada em local inadequado, realizando trabalho pouco edificante em condições desumanas e com aceso a armas de fogo.

Esse último “perfume” definiu para mim o novo caráter daquela região, a desigualdade social gritante, a ausência de qualquer ordenamento que vise o desenvolvimento meramente justo do ponto de vista social, a condição humana relegada ao lucro ilimitado pelos poderosos e ao abandono completo dos que compõem a base da sociedade.

A transformação da floresta e a destruição de tradições e modos de vida que não se resumam a render vultosos dividendos a poucos, transformando o que foi complexo em uma paisagem agroindustrial disfuncional, tem para mim um novo aroma. O ocaso da vida entre o Pará e o Maranhão cheira a carvão, cachaça e sangue.

*O autor é biólogo.

Foto: Thiago Timo/divulgação