Piracuí, um produto típico da Amazônia

Na região, o consumo de pescado caracteriza-se por uma variedade de peixes de água doce, comercializados frescos ou resfriados

Mariane Veiga, por Caetano Troiani e Dariane Enke

Publicado em: 29/10/2024 às 18:25 | Atualizado em: 30/10/2024 às 09:58

As populações da Amazônia possuem uma relação singular com os peixes. É a única região que declara preferência por eles em suas refeições quando comparada a outras proteínas animais. A forte relação com esse recurso, em especial da população ribeirinha, resulta em uma taxa média de consumo de peixes que pode ultrapassar 150 kg/habitante/ano.

Na região, o consumo de pescado caracteriza-se por uma variedade de peixes de água doce, comercializados frescos ou resfriados, destacando-se espécies como: pirarucu, dourada, tucunaré, pescada, curimatã, piramutaba, tamuatá, mapará, filhote, dentre outros, além de alguns crustáceos de água doce e salgada.

Adicionalmente, alguns subprodutos derivados de pescados, advindos do aproveitamento, são amplamente comercializados em feiras livres e mercados e carregam consigo elevado valor comercial, cultural e econômico. Um desses produtos, considerado uma farinha de peixe, é chamado de piracuí. Um produto tradicional muito apreciado em toda a Amazônia e com enorme potencial econômico, nutricional e tecnológico.

O piracuí surgiu da necessidade de conservar os peixes disponíveis na época de seca dos rios. Para isso, os povos tradicionais os desidratavam e faziam uma farinha para ser usada na época das cheias (águas altas), período de escassez de peixes em determinadas áreas.

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Etimologia

Existem registros do uso da farinha de peixe destinada ao consumo humano desde a chegada dos primeiros europeus à região e foi sendo difundido através das gerações. Os tupinambás já faziam piracuí com tainha, que seria misturada à farinha de mandioca e consumida pelos pescadores que iam para o mar.

Alguns registros bibliográficos históricos relatam a ocorrência do piracuí em toda a bacia amazônica e, em alguns casos, em regiões litorâneas do sudeste do Brasil. Hoje, a produção está concentrada na região de Manaus e do rio Tapajós a jusante de Santarém, no estado do Pará.

Do ponto de vista etimológico, a palavra piracuí vem do tupi, em que “pira” significa peixe e “cuí” significa farinha. Esta é geralmente produzida a partir do beneficiamento do acari (Pterygoplichthys pardalis), uma das espécies de peixe mais abundantemente capturadas pelas comunidades ribeirinhas do Baixo Amazonas.

Com base na legislação vigente, a denominação “farinha de peixe” não é adequada, pois o termo é aplicado ao produto do aproveitamento do beneficiamento de peixes, que não é destinado ao consumo humano, uma vez que farinha de pescado, de acordo com a definição da legislação brasileira, é classificada como um subproduto não-comestível, elaborada a partir de todo resíduo resultante de manipulações e de pescado condenado.

Dessa forma, o uso do termo “concentrado proteico de peixe” vem sendo cada vez mais empregado em pesquisas e publicações sobre o tema. Apesar da importância cultural e econômica do piracuí para essa região, poucos são os estudos dedicados a esse produto fascinante.
A produção

Tradicionalmente, o piracuí é produzido a partir do músculo do peixe, seco e desfiado, representando uma alternativa nutricional e econômica para o aproveitamento do excesso de pescado fresco de baixo valor econômico.

É uma excelente fonte proteica, em média, 70% de proteína de ótima digestibilidade, o que compensa a falta de pescado em determinadas épocas do ano, servindo como fonte alternativa de proteínas na dieta da população, especialmente a de baixa renda.

O produto representa um recurso importante para a segurança alimentar e nutricional das comunidades tradicionais: o peixe, pescado na estação de fartura, é conservado como piracuí até o período de escassez da pesca, quando ele é consumido, ganhando ainda mais relevância ao se considerar que o peixe é a maior, se não a única, fonte de proteína animal das famílias, que muitas vezes enfrentam desafios como a inexistência de rede de energia elétrica, o que impossibilita o uso de equipamentos para a conservação dos peixes por refrigeração.

Os peixes acari e tamuatá são da família dos cascudos e têm o hábito de viver no fundo dos rios, principalmente os de leito rochoso, se alimentando de vegetais, restos orgânicos e do lodo depositado. Caracterizam-se por ter o corpo formado por placas ósseas e pela respiração branquial, sendo capazes de capturar oxigênio atmosférico.

O acari é o peixe preferido dos produtores por não apresentar escamas e ter espinhas maiores, o que facilita a limpeza e melhora a qualidade da farinha. Os moradores relatam que, para quem conhece o produto, é possível perceber, apenas no olhar ou no toque, se a farinha é feita somente de acari ou se é proveniente da mistura com outras espécies de peixes.

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Processo artesanal

O processo de produção do piracuí é artesanal, porém emprega técnicas importantes como a retirada de resíduos, a desidratação e o tratamento térmico. O peixe é capturado com o uso de redes e mantido vivo até ser destinado à produção da farinha.

O abate é feito com um corte rápido e certeiro para separar a cabeça, que é destinada à terra para ser aproveitada como adubo. Devido ao grande volume, se as cabeças fossem descartadas no rio poderiam contaminá-lo.

Ainda fresco, o animal é lavado (eviscerado) e encaminhado à fervura, quando se separa a carne da “couraça” e dos ossos. As partes são desidratadas em tachos de barro ou fornos, denominados “nhaenpuna” ou “yapuna”, e reduzidas a pó pela moagem, feita com o uso de pilão ou de um rolo de madeira.

Após a moagem, é feita a adição de sal e homogeneização sobre uma chapa quente até que se atinja a umidade desejada. Em seguida, é feita uma peneiragem para separar espinhos, ossos e outras partes indesejadas, e então o produto, aglomerado em flocos, é resfriado para ser acondicionado em sacos plásticos ou de rafia e armazenado em temperatura ambiente.

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A comercialização

A comercialização do piracuí ocorre essencialmente em feiras livres e armazéns, com a farinha de peixe exposta em sacos de rafia abertos, vendida a granel, ou fracionada em sacos plásticos menores. As cidades mais populosas da região são os grandes centros consumidores, destacando-se a cidade de Santarém e as capitais, Belém e Manaus.

O escoamento da produção é feito por atravessadores, que semanalmente passam pelas comunidades recolhendo a produção e levando até as cidades próximas para fazer a revenda. Mas as comunidades também têm uma forma particular de escoar a produção do piracuí, através de redes de moradores pois, por ser tratar de um produto artesanal com tanto valor nutricional e cultural, quem vai até a região para turismo, ou visitar parentes e amigos, sempre leva o piracuí para casa.

Todavia, há algum tempo, essa venda direta para turistas e amigos ficou prejudicada, já que o transporte aéreo do piracuí é proibido pelas companhias de aviação, que alegam que o produto é inflamável e oferece risco durante o transporte.

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Considerações finais

As iniciativas de fomento à atividade por parte do poder público e o amparo legal necessário para a produção e a comercialização do piracuí poderiam abrir caminhos para o mercado institucional, ofertando um produto alternativo de proteína animal de qualidade, fato que aumentaria a visibilidade e o alcance comercial do produto e geraria renda alternativa às famílias.

Por se tratar de produto tradicional e não estar contemplado em regulamentos e instruções normativas de comércio de produtos de origem animal, o comércio se mantém informalmente em escala local.

Alguns produtores, por meio de parcerias com organizações não governamentais, regionais e internacionais, vêm buscando capacitação e respaldo técnico para se adequar aos padrões sanitários e, principalmente, respeitar as normas de identidade e qualidade para produzir o piracuí, buscando um mercado consumidor que valorize o produto.

No ano de 2018, a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará publicou a Portaria nº 3.250, que estabelece o Regulamento Técnico de Produção da Farinha de Pescado Tipo Piracuí, visando regulamentar a produção no estado.

Trata-se de um primeiro passo dado pelos órgãos reguladores na busca pela valorização e manutenção dessa cultura alimentar tão importante que, de geração em geração, vem garantindo alimento na mesa de muitas famílias das comunidades da região amazônica.

Os autores são engenheiros de alimentos.

Foto: Lígia Uribe Gonçalves/divulgação