A superação da maldição dos recursos naturais
Apesar da riqueza observada na frondosa Mata Atlântica ainda presente, indicadores socioeconômicos apontam um quadro estruturado de alta vulnerabilidade

Por Fábio Grigoletto, Bruno Puga e Carolina Galvanese
Publicado em: 19/10/2024 às 08:27 | Atualizado em: 19/10/2024 às 08:37
Muitas regiões interioranas brasileiras são marcadas pela presença de remanescentes florestais relevantes. É o caso do Vale do Ribeira, que cobre uma grande extensão do sul paulista e parte do nordeste paranaense.
A região é marcada por ambivalências. Apesar da riqueza observada na frondosa Mata Atlântica ainda presente, indicadores socioeconômicos apontam um quadro estruturado de alta vulnerabilidade. Esta condição é observada de modo agravado em bairros rurais e seus entornos.
Outra ordem de ambivalência pode ser reconhecida na região do Alto Paranapanema que,contígua à anterior, é considerada uma área de transição: apresenta um gradiente de elevaçãoprogressiva de altitude em relação ao Vale do Ribeira, como se estivesse “subindo a serra”; e,adicionalmente, revela uma combinação entre a floresta atlântica e formações ecológicas típicas do Cerrado.
Nessa região, as áreas da agricultura familiar e de remanescentes de floresta estão cedendo lugar à produção intensiva de grãos com finalidade de exportação, em um crescente processo de mudança do uso do solo.
Mais recentemente, a expansão da silvicultura tem reforçado a capacidade produtiva de certos setores, mas não tem se desdobrado em melhores condições de bem-estar para o conjunto dapopulação da região, conformando dinâmicas territoriais que seguem marcadas pelo descompasso entre ganhos produtivos e aperfeiçoamento dos meios de vida.
A presença simultânea de riquezas e vulnerabilidades nestas duas regiões indica a necessidade de abordagens integradas de ação pública, onde atores públicos e privados possam colaborar para impulsionar práticas virtuosas de resolução de problemas públicos.
Neste âmbito, surge uma questão importante, a saber: como combinar o incremento das capacidades de conservação ambiental ao mesmo tempo em que se garante as condições para que a vida dos agricultores e demais trabalhadores, afinal, possa melhorar?
Ciência, tecnologia e saberes locais
Diante do quadro de contrastes observados no Vale do Ribeira e no Alto Paranapanema, temos claramente quem são os principais perdedores: as populações rurais e periurbanas, que acabam forçadas à mobilização política para tornar possível sua autodeterminação.
Nesse sentido, pressionadas por sistemas agroindustriais intensivos em tecnologia e insumos químicos, mas pouco demandantes em termos de trabalho, e por unidades de conservação ambiental, essas populações carecem de uma estratégia adequada de desenvolvimento que as contemple enquanto potência a ser aproveitada.
Tal condição deve ser superada por meio da ampliação do arco de ocupações produtivasdisponíveis, o que passa necessariamente pela transformação dos sistemas agroindustriais e alimentares presentes nessas regiões. Para a realização desse potencial, no entanto, é necessária uma renovação no papel ali desempenhado pelo Estado e pelas universidades.
Entretanto, há certa dificuldade por parte do Estado em aproveitar as continuidades entre regiões vizinhas como ancoragem para a concepção das políticas públicas adequadas à superação das contradições. Não falamos aqui apenas em termos espaciais, mas também culturais, políticos e, especialmente, ambientais.
Uma estratégia adequada de conservação socialmente referenciada precisa considerar o ambiente em sua complexidade, o que implica reconhecer e fomentar as relações ecológicas e sociais existentes entre as regiões de baixada, como o Vale do Ribeira, e suas vizinhas serra acima, como o Alto Paranapanema.
Para tanto, não basta que a ciência desvende esses territórios ao aprofundar o conhecimento sobre eles no âmbito de cada uma das disciplinas científicas estabelecidas. É necessária uma ciência da complexidade que se beneficie do conhecimento gerado nas interfaces disciplinares e, também, em interação com saberes tácitos, como aqueles cultivados por gestores públicos e lideranças da sociedade civil local.
A mobilização do saber científico dos acadêmicos, do saber experimental dos gestores públicos e do saber vivido da sociedade civil em favor do delineamento dos problemas públicos e das estratégias de ação para sua resolução é fundamental. E não faltam exemplos de inovações motivadas por essas ideias.
Intensificar e diversificar os sistemas agroindustriais
No Vale do Ribeira, diversas iniciativas têm buscado a viabilização e o fortalecimento da cadeia produtiva da Palmeira Juçara como forma de oportunizar a ampliação e a diversificação dos ingressos de renda por meio do manejo e do processamento dos frutos da espécie como atividades econômicas capazes de combinar conservação ambiental e inclusão produtiva.
Essa diversificação é essencial para a superação da armadilha da pobreza – a impossibilidade de superação de entraves estruturais intergeracionais resultantes de condições de cidadania defasadas combinada à indisponibilidade de excedente econômico para reinvestimento – e para a ampliação das condições de permanência de jovens nas áreas rurais, já que se trata de uma alternativa que pode render postos de trabalho e ocupação em atividades agrícolas e não-agrícolas.
Evidências têm demonstrado que as ocupações não-agrícolas em bairros rurais são mais atrativas também para mulheres, especialmente no contexto de predominância de culturas agrícolas penosas, como é a bananicultura na região.
Alto Paranapanema
No caso do Alto Paranapanema, a predominância de sistemas intensificados de produção agrícola e silvícola, poupadores de trabalho em um contexto de concentração fundiária,dificulta a distribuição, dada a riqueza gerada, e uma melhora geral das condições de bem-estar usufruídas pelo conjunto da população.
Um fator agravante é que a maior parcela do passivo ambiental da região se encontra empropriedades privadas, ou seja, fora do escopo de governança direta das instituições públicas de conservação ambiental.
Essas fragilidades revelam, entretanto, algumas oportunidades. Há possibilidade deimpulsionamento de ocupações em atividades de restauração florestal nessas áreas privadas, o que pode contribuir com a inclusão produtiva de populações rurais e periurbanas que não têm encontrado emprego na lavoura da soja e na silvicultura.
Para tanto, mecanismos de intermediação que fomentem essas conexões precisam ser concebidos como estratégia de desenvolvimento territorial governada pelos atores presentes nesses territórios. Nesse sentido, é urgente que gestores públicos, sindicatos patronais e de trabalhadores rurais, universidades e empresas colaborem a partir de arranjos compartilhados de ação pública em favor da restauração de áreas de preservação permanente e reserva legal.
De modo complementar, ampliar a diversificação interna dos sistemas agroindustriais estabelecidos na região passa também pela difusão de práticas e protocolos de agricultura regenerativa que atendam a dois critérios principais: referenciamento territorial, ou seja, que levem em consideração as características físicas e culturais dessas regiões; e validação científica, ou seja, que tenham sido testados em sua viabilidade sociotécnica.
Mais do que reduzir a intensidade do uso de substâncias químicas enquanto se mantém amonotonia produtiva típica das lavouras de soja e das florestas plantadas, é necessário investir no delineamento de sistemas produtivos que imitem a natureza em sua diversidade, ampliando assim a complexidade interna dos sistemas agroindustriais.
Considerações finais
As mudanças sociais e tecnológicas demandadas pela crise socioecológica corrente não ocorrerão espontaneamente. A sociedade dispõe dos instrumentos necessários à transformação, mas parece confusa em relação a seus sentidos. É urgente superar visões distorcidas do Estado, das universidades, de atores privados e dos trabalhadores em favor do esclarecimento individual e coletivo quanto à sua enorme importância na contemporaneidade.
Alcançar o bem-estar das populações rurais e periurbanas em combinação com o incremento da capacidade de conservação ambiental em regiões como o Vale do Ribeira e o Alto Paranapanema passa por uma aliança estratégica entre uma ampla pluralidade de atores –Estado, universidades, setor privado, trabalhadores, agricultores e a sociedade civil. Essa aliança precisa se dar em bases territoriais, ou seja, referenciada nas características concretas das regiões em questão.
O destaque dado à continuidade espacial existente entre as regiões tomadas como exemplo neste texto busca evidenciar o desafio colocado, já que não se trata da mera soma de iniciativas municipais em uma dada região, mas sim de viabilizar espaços de governança que incluam os municípios, mas neles não encerrem.
Como agravante, o que se espera governar são questões que mobilizam interesses diversos e visões particulares de mundo: como, para quê, com quem e onde produzir, especialmente. Não se trata, portanto, de tarefa simples.
Os autores são doutores em administração pública, desenvolvimento econômico e planejamento e gestão do território, respectivamente.
Foto: Fábio Grigoletto/divulgação