Crentes na política
Para a autora, um dos espaços onde o conservadorismo encontra base são as igrejas, especialmente as pentecostais e neopentecostais.

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira
Publicado em: 09/10/2024 às 12:00 | Atualizado em: 09/10/2024 às 13:08
Nesta eleição para a prefeitura e para a câmara de vereadores, testemunhamos a reafirmação de que Manaus é uma cidade bolsonarista.
No segundo turno da eleição presidencial que colocou Lula outra vez na Presidência, Bolsonaro alcançou 61,28% dos votos em Manaus, enquanto Lula obteve 38,72%.
Motivo pelo qual os candidatos à prefeitura disputaram o selo de apoiado por Bolsonaro.
Aliás, as capitais do Norte figuram como os maiores percentuais a favor de Bolsonaro:
- Boa Vista (RR), 79,47%;
- Rio Branco (AC), 72,51%;
- Porto Velho (RO), 64,63%;
- Palmas (TO), 60,32%.
O presidente eleito venceu apenas em Belém, com um pouco mais da metade dos votos (50,28%).
Não por acaso são capitais de estados que abrigam a Amazônia brasileira.
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Conservadorismo de ocasião
O fenômeno que convencionamos chamar de bolsonarismo é a personificação de um estado de resistência à tendência mundial de transformações sociais profundas.
Assustam mudanças comportamentais em relação à sexualidade; a poucas, mas significativas conquistas do feminismo; à presença de povos indígenas em lugares onde se considera que estão fora de lugar, como na política e na polis; à intolerância contra preconceito e discriminação, também chamado de “mimimi”, entre outras.
Por sua vez, tais mudanças não se pretendem universais, mas garantir direitos a diversidades sempre existentes.
Porém, elas soam como uma afronta ao mundo que se imaginava conhecer, onde eram sabidos os papéis de gênero, a ordem e o lugar das hierarquias sociais.
O conservadorismo ganha tônus como a palmatória moral de um mundo imaginado e como tábua de salvação.
O medo da mudança se converte em combustível para as engrenagens econômicas que precisam de espaço político para executar projetos e projéteis.
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Os crentes
Um dos espaços onde o conservadorismo encontra base são as igrejas, especialmente as pentecostais e neopentecostais.
Contudo, não devemos cair na tentação de robotizá-las.
Os crentes não são todos iguais e não há unanimidade entre eles.
Para a antropóloga Margaux de Barros, “apesar de contribuírem a longo prazo para a socialização dos fiéis nos ideais conservadores, as igrejas pentecostais, mais participativas e menos elitistas do que as católicas, também podem representar, em certa medida, espaços onde os fiéis podem expressar divergências políticas”.
Em uma etnografia sobre as interações entre pastores e fiéis evangélicos em uma pequena igreja pentecostal da zona norte do Rio de Janeiro, a antropóloga acompanhou as tensões entre apoiadores de Lula e Bolsonaro durante a campanha para as eleições presidenciais de 2022.
A etnografia é um método de pesquisa no qual pesquisadora/pesquisador se insere no cotidiano de um grupo para compreender fenômenos sociais a partir da observação das práticas e discursos de pessoas que o experimentam.
Margaux descobriu que os líderes religiosos da pequena igreja, afinal, evitavam conduzir a opinião dos fiéis sobre as eleições.
Isso porque os pastores, na função de condutores de um pequeno rebanho, evitavam dividi-lo.
Todavia, os pastores utilizavam passagens bíblicas como metáforas para o que se vivia nas eleições agressivamente polarizadas de 2022.
Desse modo, para os apoiadores de Bolsonaro, Lula, o progressismo e a corrupção a qual ele era relacionado representavam o mal a ser combatido.
Enquanto isso, os apoiadores de Lula argumentavam a separação entre igreja e governo, pois a bandeira da igreja deveria ser Deus, independentemente de quem se sentasse na cadeira presidencial. Que um presidente deve governar para todas as religiões e não apenas para os crentes.
Outros pesquisadores “têm demonstrado que as igrejas evangélicas participam da legitimação do modelo econômico neoliberal. No entanto, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, cuja ética está mais centrada na acumulação de capital, por meio da teologia da prosperidade, o esforço individual e o trabalho são mais valorizados pelas autoridades religiosas das igrejas pentecostais.
Nesse sentido, a ética religiosa do trabalho promovida nesta igreja se assemelha mais àquela das igrejas do protestantismo histórico” (adaptado do original).
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Demônio de muitas cabeças
Apesar do conhecido interesse de segmentos protestantes na política, esse é um fenômeno ainda pouco estudado na antropologia.
Em uma estimativa feita pelo The Intercept Brasil, Manaus caminha para ser a câmara de vereadores totalmente evangélica do país. Tendência que foi confirmada nesta eleição.
Porém, a religião protestante não deve ser demonizada.
A criação de um estereótipo de gado no curral sobre as igrejas protestantes, em realidade, alimentaria um sistema conformado sobre ressentimentos.
Para a antropóloga Letícia Cesarino, que pesquisa como o bolsonarismo se conforma nas redes sociais, o fenômeno é a confluência de diferentes ecossistemas conspiratórios e pseudociências que não possuem, necessariamente, dimensões políticas ou religiosas.
“… sugiro como os públicos bolsonaristas se formaram a partir de demandas latentes dos usuários (de redes sociais), mobilizando afetos de ressentimento e exaltação do senso comum”.
A atual infraestrutura de mídias (sistemas algorítimicos) permitiria ressonâncias entre elas.
Para Letícia, tal modo operacional possui um caráter anti-estrutural que corrói a confiança social e a legitimidade da democracia liberal, ciência, jornalismo, educação escolar, sistema jurídico-legal, entre outros.
Desse modo, o bolsonarismo estaria para além dos bancos das igrejas protestantes.
*A autora é antropóloga.
Foto: reprodução