BR-319: a Ciência e o Estado

Aplicar os métodos e as técnicas das ciências exatas e naturais de forma mecânica aos fenômenos sociais, dada sua natureza dinâmica, não constitui tarefa fácil

BR-319 artigo Aldenor Ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira e Lúcio Carril*

Publicado em: 28/09/2024 às 04:00 | Atualizado em: 28/09/2024 às 13:59

No âmbito das discussões sobre a repavimentação da BR-319 há, hoje, o predomínio da atuação de cientistas do campo das ciências exatas e da natureza na formulação de estudos acerca da sua viabilidade. Este campo não apenas sequestrou o debate, formulando hipóteses, cristalizando ideias e valores, como também já definiu de antemão a inviabilidade da obra. 

Não sabemos se é por má-fé, descuido ou pela concepção veemente de que ciência de fato são apenas as ciências exatas e as da natureza, realidade que exclui, necessariamente, as ciências humanas e sociais, esses cientistas agem de maneira dogmática. Por exemplo, decretam antecipadamente a inviabilidade de qualquer outro arranjo que possibilite a recuperação da rodovia. 

Neste âmbito, decretada a impraticabilidade da obra, nenhum outro campo do conhecimento, como a Sociologia ou a Antropologia, podem mais se manifestar. Ocorre que a verdadeira ciência não pode trabalhar assim, de forma dogmática.

Ciências Sociais

As ciências sociais surgem posteriormente às ciências exatas e naturais, adotando, inicialmente, métodos e procedimentos semelhantes. Citam-se a observação, a experimentação e a comparação, ou seja, métodos e técnicas já cristalizados pelas ciências positivistas. 

Todavia, aplicar os métodos e as técnicas das ciências exatas e naturais de forma mecânica aos fenômenos sociais, dada sua natureza dinâmica, não constitui tarefa fácil. Neste âmbito, Max Weber, um dos fundadores da Sociologia, propõe uma distinção. 

Para ele, o sociólogo não lida com uma matéria inerte, mas, sim, com ações humanas carregadas de sentidos e significados. Portanto, o sociólogo precisa interpretar e entender os contextos e as intenções dos sujeitos sociais, ao invés de assumir uma postura de observador passivo diante do objeto de estudo. 

No âmbito da Amazônia, historicamente, as ciências exatas e naturais foram protagonistas nas análises e interpretações, arrogando para si o verdadeiro conhecimento da natureza. De fato, há muita informação produzida sobre o bioma. Com efeito, lhes faltava (e ainda falta) o olhar para o social e o seu corolário: a cultura. 

A Amazônia não é um vazio demográfico, como se pregava antigamente nos estudos de Geografia. Pelo contrário, a região abriga enorme diversidade cultural. É um mosaico de povos tradicionais indígenas, quilombolas, caboclos-ribeirinhos, pescadores, piaçabeiros, castanheiros, agricultores familiares, peconheiros, quebradeiras de coco, dentre outras definições. 

Ademais, há séculos esses povos manejam muito bem todos os recursos naturais que demandam a sua sobrevivência, em uma convivência equilibrada com a natureza. Neste sentido, qualquer estudo que não leve em consideração a interação biossociocultural que ocorre nesse pedaço de chão brasileiro produzirá conhecimentos enviesados. 

Portanto, realizar pesquisas científicas sobre a Amazônia não é privilégio das ciências exatas e naturais. Além disso, elas precisam incluir o social em seus estudos e reconhecer que as ciências sociais também são ciências, com teorias, métodos, técnicas de coleta e análise de dados e produção de conhecimento sobre a região. O debate precisa ser feito. E há espaço para todos(as), desde que se considere e se respeite todas as ciências.

A importância do Estado 

As ciências exatas e as da natureza possuem forte tendência para desconsiderar as instituições humanas. É o caso, por exemplo, do Estado. Apesar da doutrina neoliberal tentar reduzir a sua importância, culpabilizando e responsabilizando os sujeitos pelo êxito ou fracasso de determinada ação política, o Estado é o único que tem condições de garantir a preservação da natureza e a salvação do planeta. 

O mundo todo está mobilizado para que os Estados Nacionais garantam essa preservação/salvação, visto que o mercado é voraz e não tem condições de garantir isso. Um bom exemplo são as COPs, reuniões anuais de signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima. Trata-se de reuniões de Estados Nacionais para se pensar preservação do planeta e não reuniões de mercado. 

Neste âmbito, a pauta contrária de grande parte dos representantes das ciências exatas e da natureza ao asfaltamento da BR-319, que de antemão indicam em seus estudos que o Estado não tem condições de garantir a recuperação da rodovia nem a preservação das florestas em seu entorno é, na verdade, desconhecimento do papel do Estado na história da Amazônia. 

Ainda, é uma postura que visa esconder os verdadeiros culpados pela destruição da natureza e pelo aquecimento global: o capital. Eles(as) só focam na parte biológica/ecológica (que é relevante, não discordamos), mas dificilmente tocam na questão política e social inerentes ao capital que, no fundo, envolve toda a questão da preservação de qualquer bioma. 

Talvez não falem nada contra o capital porque em grande medida suas pesquisas são bancadas por ele. O capital tem a capacidade de patrocinar pesquisas sobre borboletas, mico-leão, bromélias etc., mas raramente financia pesquisas no campo das ciências humanas e sociais, ao menos não na mesma proporção. Assim, as pesquisas mantêm o foco na natureza e não atacam os verdadeiros causadores dos problemas ambientais. 

Conclusão 

Concluímos afirmando que os cientistas sociais também defendem a Amazônia e o planeta. Com efeito, nunca abandonamos a perspectiva do humano em nossas análises acerca do ambiente. Para nós, a natureza em si, sem relação com o humano, é apenas um espaço desprovido de perspectiva teleológica, visto que o humano também faz parte da natureza. 

Portanto, não é defendendo o isolamento do Amazonas nem desconsiderando a vida e a cultura de sua população que haverá preservação de sua natureza. Na verdade, é o contrário. É preciso integrá-lo, conectá-lo, dar maior visibilidade aos problemas sociais e ambientais do estado e exigir políticas públicas que garantam o seu desenvolvimento sustentável. Com efeito, nisto insistimos, não será possível este tipo de desenvolvimento sem infraestrutura adequada. 

Arte: Gilmal

*Os autores são sociólogos