Tradição Caprichoso
Sobre o boi da Francesa pesam as distintas versões de sua fundação apresentadas na arena durante os anos

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira
Publicado em: 20/06/2024 às 20:12 | Atualizado em: 20/06/2024 às 20:25
O segundo ensaio técnico do boi Caprichoso, neste dia 19, no curral Zeca Xibelão, em Parintins, evocou a sua tradição com o refrão da toada “Raízes de um povo”, de Chico da Silva:
“Alô, alô! Caprichoso chegou!”.
Sobre o boi da Francesa pesam as distintas versões de sua fundação apresentadas na arena durante os anos.
Diferentemente de seu adversário, que foi criado por uma família, o Caprichoso é “feito por muitas mãos”, como diz a toada que veio em seguida: “Feito de pano e espuma”, de Adriano Aguiar e Ronaldo Barbosa Júnior.
Não há qualquer demérito nisso. Muitos folguedos e brincadeiras folclóricas nascem da vontade de festejar entre amigos ou em uma vizinhança.
Contudo, a contribuição de muitas famílias na criação do boi Caprichoso foi ignorada quando a agremiação centralizou sua versão oficial na família Cid.
Nos últimos anos, o boi tem se esforçado em reconstruir sua narrativa assumindo os outros fundadores e donos ainda que de modo coadjuvante.


Por isso, ao longo da noite buscou mencionar nominalmente vários de seus brincantes históricos, como os amigos Santarém, Porrotó, Luiz Gonzaga, Pamim e Zé Caiá, da toada “Os pescadores”, de Chico da Silva.
Ao longo da noite, o ensaio ressaltou ainda a tradição na defesa dos itens sinhazinha da fazenda Valentina Cid e boi-bumbá evolução, com o tripa Alexandre Azevedo. Os dois herdaram os postos de seus pais.
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Nativa da terra
Neste ano, pesa sobre a cunhã-poranga do boi Caprichoso, Marciele Albuquerque, a responsabilidade de superar a fama e o prestígio que a sua oponente adquiriu ao participar do reality show da TV Globo. O que pode, possivelmente, contar a favor de Isabelle.
Na noite de ontem, a cunhã-poranga azul performou uma dança de guerra extasiante (foto em destaque). O seu número de dança e ilusionismo foi o ponto alto da apresentação.
Ao encerrar o seu solo, Marciele permaneceu cercada pelo corpo de dança, que distraiu o público com uma coreografia concêntrica, cheia de movimentos. Quando os dançarinos voltam a abrir o círculo, estava em seu lugar o pajé Erick Beltrão.
Contudo, o discurso sobre o fato de Marciele ser indígena munduruku nos remete a uma discussão ultrapassada, mas que deixa rastros até hoje em nossa sociedade.
Quando o apresentador ressalta que ela é originária e a única realmente nativa da terra, ele nos leva a pensar sobre o lugar étnico de Isabelle Nogueira, sua oponente.
O discurso da miscigenação racial coloca os povos indígenas como existências autênticas e caboclos como misturados: nem indígena, nem branco, nem negro, nem nada.
Portanto, o discurso poderia contar que ela é indígena sem passar pelo essencialismo. Afinal, nós, gentes amazônicas, somos frutos da mesma violência colonial que tanto matou quanto apagou memórias. Os povos indígenas não são mais nem menos originários do que os “caboclos”.
A julgar pelo que foi anunciado pelo apresentador, nota-se que a questão do que chamamos genericamente de caboclo ainda não foi superada nos bumbás.
Na figura típica regional “Os pescadores da Amazônia”, o caboclo ainda é apresentado de maneira romantizada.
*A autora é antropóloga.
Fotos: Arleison Cruz, Michel Amazonas e Pedro Coelho/redes sociais do Caprichoso