O cheiro de ‘viajar de barco para Parintins’
"O mês de junho em Parintins é tempo de brilhar". Embarque nessa viagem com a antropóloga Dassuem Nogueira.

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 12/06/2024 às 13:36 | Atualizado em: 12/06/2024 às 16:04
O mês de junho tem cheiro de “viajar de barco para Parintins”. A viagem de Manaus até a ilha dos tupinambaranas é um ritual marcado por odores próprios.
O cais do porto da capital tem um forte cheiro de ferro e ferrugem. É assim porque sua estrutura é flutuante e vive em contato com o sol forte e a água.
Chega ao nariz a umidade do rio misturada com o diesel que queima dos motores dos barcos e dos imensos caminhões e veículos cargueiros. O diesel deixa um rastro furta-cor sobre o rio Negro, em frente a Manaus.
No caminho até o embarque, sentimos o cheiro de suor dos trabalhadores e dos perfumes adocicados dos viajantes.
Ao entrar no barco, a tinta óleo recende da madeira e dos metais de sua estrutura, das mercadorias entrando em carrinhos. São caixas e mais caixas de cerveja e produtos de armazém.
Subindo aos conveses, que são dormitórios, vem o cheiro dos panos das redes, dos perfumados viajantes, do suor dos vendedores ambulantes misturados ao dos protetores solares sobre a pele, das comidas que vendem: as bananas fritas salgadas, o cítrico das laranjas descascadas prontas para darem sabor ao tempo.
Nem os cachorrinhos querem passar o grande festival longe da ilha. Acompanhando seus tutores, acomodados em paninhos como pet sinhazinhas, eles concentram perfume de shampoo canino e seu cheirinho característico. Ao lado deles, sobe o pitiú das rações industrializadas.

Pelas 11 horas da manhã, ainda no cais, o convés é inundado pelo cheiro das refeições mantidas quentinhas em coolers que pesam nos ombros dos ambulantes ao subir as escadas. Eles abrem as marmitas para seduzir clientes famintos e ansiosos pela saída da embarcação. Na descida, seus ombros vão mais leves.
As senhoras que usam colônias abaunilhadas olham velhacas para os vendedores de comida. Elas são espertas, trazem de casa sacolas de alimentos para si e para os seus. São potes com farofas, pãezinhos embrulhados em papel alumínio, achocolatados, sucos e frutas que deixam o seu entorno com cheiro de reunião de família.
Antes de partir, os barcos dão uma, duas e depois três sonadas. É como nos teatros antes de iniciar os espetáculos.
Depois de desatracar as cordas do cais, os barcos dão uma volta apontando sua proa para o caminho que leva a Parintins. Nessa volta, sentimos o cheiro da fumaça do diesel que aqueceu no arranque do motor.
Os banheiros têm o odor da tinta a óleo e dos produtos de limpeza que nunca vencem a urina humana, dos sabonetes que ficam esquecidos nas vigas internas e do papel sujo que se acumula no canto.
Com o navegar do barco, o cheiro da umidade amazônica passa a predominar. A umidade que sobe do rio é como um orvalho que vem de baixo.
Às três da tarde recende o café vindo da cozinha nos fundos e reúne em torno da garrafa térmica aqueles que não vivem as tardes sem ele.
Pouco depois das cinco, o capitão anuncia da sua cabine a hora do jantar que chega aos nossos ouvidos pelas caixas de som. Como são muitas pessoas, é necessário começar a servir cedo para não deixar ninguém com fome.
Ao contrário dos pilotos de avião que falam baixinho e enrouquecidos, os capitães parintinenses anunciam com voz empostada e em alto e bom som os seus recados, carregados com o sotaque típico da ilha, assustando quem tira um cochilo.
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O meio da viagem
Às 20h o barco para em Itacoatiara para o embarque de passageiros e mercadorias.
Aos vendedores desse porto não é mais permitida a entrada. Por isso, seus produtos são oferecidos em baldes pendurados em varas de cano pvc para que, dessa forma, os clientes sejam atraídos pelo odor dos sanduíches quentinhos e outras guloseimas.

Pela manhã, o cheiro é do detergente líquido das pias misturado ao de creme dental dos viajantes que se arrumam para desembarcar.
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Bem apresentado
É fácil distinguir os parintinenses. Os de outros lugares descem com a cara amarrotada da noite dormida de mal jeito. Mas, os filhos da ilha, como um item de boi-bumbá, não surgem do seu barco menos do que perfumados e bem arrumados.
O mês de junho em Parintins é tempo de brilhar.
Fotos: Dassuem Nogueira/especial para o BNC Amazonas