A cunhã-poranga e a miss do boi
Neste artigo, a autora destaca que quando surge como item no festival de Parintins, cunhã-poranga tinha um sentido de miss.

Ednilson Maciel, Por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 30/05/2024 às 11:49 | Atualizado em: 30/05/2024 às 12:11
Cunhã-poranga é a tradução literal de mulher bonita em nheengatu. Essa é a língua franca criada pelos povos indígenas da Amazônia para interagirem entre si, apropriada pelos jesuítas para facilitar a colonização.
Porém, há outro significado para o termo. Para muitos povos indígenas, a mulher bonita está mais próxima do que nós entendemos por “mulher admirável”.
A beleza da cunhã-poranga está mais em suas habilidades sociais e de trabalho. E menos na estética greco-romana ocidental.
Quando surge como item no festival de Parintins, cunhã-poranga tinha um sentido de miss, pois ela não era apenas uma mulher bonita, mas a mais bonita da aldeia.
Isso porque o posto de “a mais bela dos bumbás” era da miss do boi.
“Miss” é a tradução literal em inglês de “senhorita”, tratamento para mulher que não é casada. Quando empregado no contexto dos concursos de beleza, quer dizer “garota”.
Assim, as “garotas do boi” se apresentavam usando maiôs, coroas, cedros, faixas e desfilavam de salto alto na arena como uma “miss” em um concurso.
Contudo, o item não se sustentou.
A miss do “boi” saltava aos olhos como um elemento fora de contexto. Embora servisse a um propósito interessante na sociedade parintinense.
A partir de 1989, a cunhã-poranga, a mulher mais bonita da aldeia, passou a entrar na arena com figurino inspirado na estética indígena, empunhando arco e flecha, bailando o tradicional dois-pra-lá-dois-pra-cá do boi-bumbá.
Um ano antes, a carta magna de 1988 reconheceu os direitos dos povos indígenas de viverem de acordo com os seus costumes e os direitos originários sobre suas terras.
Uma vitória após uma forte campanha pública, inclusive internacional feita pelo cacique Raoni e pelo cantor inglês Sting. Em 1987, eles percorreram 17 países buscando apoio internacional para pressionar o governo brasileiro.
Naquele momento, a adoção do termo cunhã-poranga em nheengatu para a mulher mais bonita do boi-bumbá expressava a valorização do que seria a matriz indígena da cultura cabocla.
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As garotas do boi
Aqui cabe situar que Parintins é uma cidade pequena, com pouco mais de 96 mil habitantes. Na década de 1980, tinha cerca de 51 mil, segundo o IBGE.
Destaco também que é um lugar onde muito da vida política, cultural e social gira em torno da igreja católica. O próprio festival folclórico é uma iniciativa de pessoas vinculadas à igreja.
A festa de Nossa Senhora do Carmo, que ocorre de 6 a 16 de julho, é a maior manifestação católica do estado do Amazonas.
A virgem do Carmelo é, frequentemente, homenageada nas apresentações dos bois Caprichoso e Garantido.
Portanto, Parintins é uma cidade conservadora em seus costumes. Obviamente, não sem contradições e incoerências.
Sendo assim, as “garotas do boi”, não apenas a miss, mas a rainha da fazenda, a rainha do folclore e a porta-estandarte, nas décadas de 70 e 80, eram postos resguardados para a aparição das distintas moças da cidade.
Reparem que, exceto a miss do boi, elas se apresentavam vestidas dos pés à cabeça. E que até hoje, ao contrário do carnaval carioca, o festival não recorre aos seios de fora nas apresentações das mulheres.
Já na década de 90, Karina Cid, sinhazinha da fazenda do boi Caprichoso, apareceu de seios de fora ao desfilar pela Grande Rio no carnaval carioca. Acabou nas páginas da revista Manchete e deu muito que falar na pacata Parintins.
Reparem também em uma questão econômica relevante.
Nas primeiras edições do festival de Parintins, os bois não tinham nem a receita nem o poder político que tem hoje.
Assim, a participação das moças era oportuna, pois seus figurinos eram patrocinados por suas famílias ou padrinhos.
Essa era uma relação que correspondia aos interesses dos donos do boi e dos donos do dinheiro da cidade, naquela época, comerciantes, funcionários públicos e políticos.
Os bois passaram a ser espaços onde as elites locais demonstravam seu poder monetário. Aliança que até hoje se mantém.
Desse modo, até recentemente, as itens femininas dos bois eram filhas de pessoas importantes na cidade ou dos bois – se é que essas esferas se separam em Parintins.
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Profissão item
A profissionalização dos espetáculos passou a requerer dedicação maior das moças.
Além de se apresentarem em junho no bumbódromo, elas passaram a ter que se apresentar em eventos em Manaus, no Brasil e no exterior o ano inteiro.
Dificilmente a agenda dos itens é conciliável com outra carreira.
Sendo assim, deixou de ser interessante para as famílias abastadas da cidade que suas filhas se dedicassem ao boi-bumbá. Pelo menos, não por muito tempo.
Para os bois, passou a ser imprescindível que elas se tornassem profissionais da performance, dançarinas, atrizes e os rostos de suas agremiações.
Contudo, tal expertise requer anos de dedicação e envolvimento.
Foi assim que as itens do boi passaram a vir já maduras de outros festivais amazônicos, a serem escolhidas em seleção pública, a virem dos corpos de baile das próprias agremiações e a assumirem os postos de itens mais velhas.
Ser item de boi virou uma profissão.
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Mais do que belas mulheres
Os novos tempos exigiram que as garotas do boi-bumbá deixassem ser apenas belas.
O discurso de a mulher mais bonita da aldeia, há tempos já não é mais suficiente para elas e para o mundo.
Assim, agregou-se a elas algo de representatividade. A cunhã-poranga passou a ser apresentada como representante da beleza da mulher indígena e sua dança assumiu uma performance de guerra.
A rainha do folclore passou a representar expressões da cultura popular e a beleza da mulher amazônica não indígena.
E a porta-estandarte é o lugar da representatividade de sua comunidade.
Por um lado, a profissionalização das itens femininas do boi-bumbá de Parintins ampliou o raio de busca de talentos de performance para além da ilha.
Por outro, oportuniza que as filhas de famílias econômica e politicamente menos poderosas concorram ao posto que há alguns anos não poderiam.
*A autora é antropóloga.
Foto: reprodução/rede social