Uma música que ninguém escuta

A música, seja o estilo que for, é um artesanato. É fruto de mãos habilidosas, de ouvidos sensíveis, de percepções aguçadas

ARTE GILMAL PARA o artido bnc Uma música que ninguém escuta

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 04/11/2023 às 02:00 | Atualizado em: 04/11/2023 às 09:18

O que seria de um baile sem uma boa banda tocando? O que seria do cinema, do teatro, das novelas, das festas natalinas, das festas de casamento e de aniversário ou, até mesmo, de um velório sem uma boa música para se ouvir? 

Eu respondo: não seria, ou melhor, seria tudo terrivelmente triste. 

A música, seja o estilo que for, é um artesanato. É fruto de mãos habilidosas, de ouvidos sensíveis, de percepções aguçadas, de mentes brilhantes e dedicadas. Enfim, ela é produzida por homens e mulheres que merecem respeito e reconhecimento. 

A música é uma matemática artesanal, da qual o artesão precisa dominar várias técnicas e possuir ferramentas adequadas para a sua elaboração. Todavia, os(as) musicistas são extremamente desvalorizados(as) em nosso país. Mesmo os(as) mais produtivos(as) e renomados(as) não são remunerados(as) à altura de seus talentos e das obras de arte que produzem. Os cachês são muito baixos e a rotina de trabalho é extenuante. 

Apesar de toda a profissionalização que este meio alcançou, ainda há muita gente que acha que ser musicista é mais diversão do que profissão. Não é. Musicistas são trabalhadores(as). Nesta condição, precisam ser reconhecidos(as), respeitados(as) e, fundamentalmente, bem remunerados(as). 

Sem musicistas para tocar não há baile. E havendo som, mesmo que oriundo de outros meios, a atmosfera será outra. O clima de emoção e interação que se estabelece com uma banda tocando ao vivo é infinitamente melhor e mais emocionante que qualquer aparelho eletrônico tocando. 

Mercado de bilhões

É importante mencionarmos que há uma poderosa indústria fonográfica no Brasil. Uma cadeia produtiva longa que movimenta alguns bilhões de reais por ano no país. À guisa de exemplo, a manchete do Jornal do Comércio de Belo Horizonte, em sua versão on-line publicada em 23 de setembro de 2023, estampa a seguinte notícia: “Mercado fonográfico movimenta R$ 1,19 bi no primeiro semestre”.

O(a) leitor(a) há de concordar que esta cifra é impressionante, não é mesmo? Ocorre que não há indústria fonográfica sem musicistas (instrumentistas e cantores) para realizarem as gravações. 

Neste sentido, a indústria fonográfica segue a mesma lógica de exploração da força de trabalho típica do capitalismo. Trata-se de uma relação de exploração e expropriação. Um tipo de desapropriação do talento e da criatividade de centenas de musicistas espalhados pelo Brasil. 

Exploração e expropriação

A desvalorização, a exploração e a expropriação dos(as) trabalhadores(as) da arte musical em nosso país são dissonâncias inconvenientes. Os(as) musicistas são trabalhadores(as) invisíveis, pouco remunerados(as) ou são remunerados(as) tendo como base o gosto ou o humor do contratante.

O mais agravante é que, diante da impossibilidade de estabelecer uma remuneração regular e satisfatória, é muito comum o(a) musicista(a) exercer mais de uma função, seja como técnico(a) de som, instrumentista, professor, entre outras. Podemos, então, deduzir que a classe musical necessita de uma organização formal que estabeleça condições para sua melhor atuação e remuneração.

O trabalho realizado pelos(as) musicistas brasileiros(as) pode ser comparado a uma música muito bonita, mas que ninguém escuta. Portanto, contratantes, paguem bem os(as) musicistas. Afinal, sem eles(as) não existe música, sem eles(as) o show para, sem eles(as) a tristeza toma conta da vida. 

*Sociólogo

Arte: Gilmal