O professor e o drama da viagem de S. Gabriel a Manaus pelo rio Negro
Sem a água abundante de sempre, viagem durou 12 dias

Da Redação do BNC Amazonas
Publicado em: 25/10/2023 às 23:50 | Atualizado em: 26/10/2023 às 13:58
Com a seca recorde dos rios do Amazonas, viajar de barco regional se transforma em aventura e drama. Foi o que viveu o professor Raimundo Valmir Santarém dos Santos, que saiu de São Gabriel da Cachoeira para uma viagem corriqueira de três dias até Manaus. A distância entre as cidades é de cerca de 850 quilômetros.
Contudo, sem a água abundante de sempre, essa viagem durou 12 dias. Valmir narra que foram dias difíceis, de muito trabalho para desencalhar o barco dos bancos de areia por várias vezes. E ainda tendo de enfrentar fome e chuva nas noites dos praiados que se formam no meio do rio Negro.
A angústia aumentava a cada vez que lanchas regionais a jato se aproximavam e a frustração vinha junto quando não dava para resgatar todos os passageiros ilhados. De 25 que embarcaram em São Gabriel da Cachoeira, entre adultos, crianças e idosos, o barco chegou a Manaus neste dia 25 com apenas sete passageiros.
O professor resolveu fazer o diário dessa viagem para que as pessoas que não precisam do transporte fluvial tenham uma noção do drama que vivem os amazonenses, sobretudo neste momento.


Diário de uma aventura
Valmir conta que o barco de madeira Gênesis VII saiu de São Gabriel da Cachoeira com destino a Manaus no amanhecer do dia 14, um sábado. A previsão de chegada à capital era o dia 17, uma terça feira.
Já no primeiro dia da viagem, o barco precisou passar a noite em uma praia no meio do rio Negro. O motivo era o risco de navegar em meio à escuridão e colidir com as pedras expostas pela seca, além dos bancos de areia, estes muitos comuns, como o relato da viagem vai mostrar.
Logo no amanhecer do domingo, a viagem prosseguiu “para aproveitar o dia”.
Contudo, aquele primeiro dia era o prenúncio de como a viagem seria.
“Por volta das 14h ficamos encalhados em uma praia no meio do rio. Passamos o resto do dia tentando desencalhar o barco, mas, como não foi possível, lá ficamos a noite para no dia seguinte tentar sair”.
Engana-se quem pensou que a noite encalhado na praia seria para dormir ou apreciar o luar. Nuvens negras esconderam a Lua e logo veio um forte temporal. No meio do rio ele toma potência, o que causou um susto enorme aos passageiros e tripulação.
“Pensava que ja ia acontecer o pior, isto porque estávamos no meio do rio, sem ter muita coisa a fazer. Graças a Deus passou e tudo ficou bem”.
Na manhã seguinte, depois da noite de terror, Valmir conta que aí que foram percebidos os problemas deixados pelo temporal:
“O leme apresentou problemas e a palheta [hélice] também já estava sem condições de funcionar”.

No final dessa manhã, graças ao esforço também dos passageiros, o barco conseguiu ser desencalhado. Uma nova praia foi buscada para conserto das avarias.
“Alguns tripulantes saíram de voadeira [lancha rápida regional] para soldar as peças do leme e a palheta na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, que ficava mais ou menos a duas a três horas de voadeira”.
Valmir relatou que a equipe só voltou ao barco às 21h. Então, já não havia mais nada a fazer nesse dia.
No terceiro dia, cedinho, dia previsto para a chegada a Manaus, a ordem era trabalhar no leme e palheta, e às 10h deu para seguir viagem.
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Escala em Santa Isabel
Ao se aproximar do município de Santa Isabel do Rio Negro no dia 18, o dono do barco conseguiu que uma lancha a jato desse uma carona para as mulheres, crianças e idosos rumo a Manaus. Os demais passaram a noite no barco já na cidade vizinha. Na manhã, a viagem prosseguiu, com um certo otimismo de que agora ia dar tudo certo.

Próxima parada: Barcelos
Todavia, “achando que logo íamos chegar à cidade de Barcelos, andamos um pouco, encalhamos novamente e, ao tentar sair, quebrou a palheta do barco”.
Segundo o professor, mesmo assim foi possível tirar o barco do banco de areia e navegar lentamente até achar uma outra praia para passar a noite.
E assim, de palheta em palheta, de encalhe em encalhe, o Gênesis e seus viajantes conseguiram vencer o dia 19 como desde o primeiro dia: dormindo na praia.
Frustração
No sexto dia de viagem, na sexta-feira, a luta para chegar a Manaus já estava reduzida a sete passageiros. Os demais já haviam conseguido ser resgatados.
“Fomos informados que o expresso [lancha de viagens veloz] que estava passando à noite para Manaus ia nos levar. Avisamos para os parentes e amigos que já íamos de expresso e chegaríamos a Manaus no sábado, pela manhã”.
Isso deu um banho de animação em quem estava no barco.
Mas, quando a noite e a lancha chegaram, a decepção veio junto. Só havia vaga para um passageiro. “Ficamos todos chateados, mas como não podíamos fazer nada, armamos as redes novamente e vida que segue. Chegamos a Barcelos às 11h do dia 21, sábado”.

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Agora vai?
Nesse dia, o sétimo da viagem de aventura, foi preciso abastecer a dispensa do barco porque “a alimentação já estava terminando”.
E agora, aparentemente livre dos encalhamentos, o barco navegou bem durante o dia. À noite, por precaução, o pernoite foi na praia, como sempre.
Conforme o professor, o oitavo dia, portanto, dava pinta de que seria o último dessa atropelada viagem. Era manhã de domingo e a jornada seguiu.

Ah, uma palheta!
Quando ninguém mais lembrava dela, eis que a palheta do Gênesis volta a ser o calcanhar de Aquiles dessa aventura.
Trocada, a nova não encaixava direito. Dessa forma, não impulsionava o barco para frente com a mesma velocidade.
Assim, Valmir e seus colegas de aventura só puderam seguir viagem depois que uma caridosa embarcação que passava pelo rio Negro cedeu uma hélice.
“Todos felizes com o pensamento positivo, falavam: ‘Agora vai de verdade!’”.
E foi assim que o barco conseguiu voltar a navegar normalmente. Porém, não sem antes de levar um novo susto:
“Logo que saímos, pegamos um temporal muito muito forte. Devagar, seguimos e vencemos”, afirmou Valmir, feliz quando avistou o porto de Manaus.
Para ele e seus companheiros de drama, foram 12 dias no rio Negro que ficaram para sempre na memória.
Fotos: Valmir Santarém/cedidas gentilmente ao BNC Amazonas