O necrochorume social dos podcasts

Na era da infodemia estes programas estão ajudando a imbecilizar ainda mais o povo

necrochorume dos podcasts Arte Gilmal

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 23/09/2023 às 00:33 | Atualizado em: 23/09/2023 às 01:31

A Internet brasileira virou uma “pandemia” de podcasts. Salvo algumas exceções, neste tipo de programa, todo tipo de absurdo acontece. 

Os podcasts, na sua maioria, são verdadeiros porta-vozes de gente ávida por espalhar desinformação. Há de tudo nos programas, desde teorias da conspiração, fake news, misoginia, machismo, negacionismo científico e político, ataque à democracia e às instituições etc. 

O formato dos programas recria o ambiente informal e descontraído de uma conversa feita em casa ou em um bar. Todavia, não há compromisso algum com a etiqueta, a boa educação, a ética, o respeito e, acima de tudo, com a verdade. 

Trata-se de um ambiente livre, onde os convidados podem fumar, beber, falar palavrões, xingar e caluniar as pessoas. Todavia, a transposição do ambiente descontraído e informal da oikia (casa/lar) para o mundo virtual é um erro. Há distinções importantes que precisam ser feitas entre a esfera pública e a esfera privada.

Público e privado

Hannah Arendt, na obra A Condição Humana (1989), faz essas distinções. Ao se referir ao termo público, Arendt quer mencionar uma dimensão da vida que é o oposto da esfera privada.

O termo público, para ela, significa, primeiramente, que aquilo que vem a público pode não somente ser visto, mas ouvido por todos, inclusive por nós mesmos, constituindo-se a realidade. É o lugar onde as experiências da vida assumem um caráter desindividualizado e desprivatizado. 

Para Arendt “[…] há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público; neste, só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado”.

Por outro lado, a esfera privada, isto é, a esfera do lar, é o lugar onde ocorre a perpetuação da espécie, a manutenção biológica da vida, ou seja, é o lugar da intimidade, do labor. Não há relevância pública nisto. 

Arendt diz: “a subjetividade da privatividade pode prolongar-se e multiplicar-se na família; pode até tornar-se tão forte que o seu peso é sentido na esfera pública; mas esse ‘mundo’ familiar jamais pode substituir a realidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores”.

Portanto, os podcasts, ao tentarem reproduzir virtualmente um ambiente típico da oikia, ou seja, da esfera privada, empobrecem a esfera pública e ambas perdem suas principais características. A esfera pública empobrece-se ao abrigar as ações e atividades da intimidade do lar. O resultado disto é a produção de necrochorume, social e cultural, que temos visto. 

Grande problema social

Certamente estamos diante de um grande problema social, dada a amplitude e a proliferação dos podcasts no país sem nenhum tipo de regulamentação. Isto é preocupante, pois uma parte considerável da sociedade brasileira não é devidamente pronta para filtrar as informações e desinformações propagadas na maioria destes programas. 

Sei que há exceções, porém, na era da infodemia estes programas estão ajudando a imbecilizar ainda mais o povo. E, pior, sob o argumento da liberdade de expressão, muitos podcasts ajudam a propagar o ódio de classe e preconceitos de todas as ordens. O mais agravante é que vivenciamos uma produção diária e em larga escala de necrochorume social. 

*Sociólogo

Arte: Gilmal