BR-319 e o mito da natureza intocada 

Não se pode deixar de fazer uma coisa certa apenas porque há outra coisa feita errada

BR-319 e o mito da natureza intocada artigo aldenor ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 12/08/2023 às 04:30 | Atualizado em: 12/08/2023 às 04:30

A BR-319, também chamada de Rodovia Manaus – Porto Velho, é a única ligação terrestre do estado do Amazonas com outras regiões do Brasil. Trata-se de uma rodovia que foi inaugurada na década de 1970, mais precisamente no dia 27 de março de 1976.

A rodovia nasceu do projeto de integração nacional comandado pelos militares. A política desenvolvimentista daquele período fez nascer no coração da cidade de Manaus a Zona Franca, um modelo de negócios bastante polêmico, que remete a várias interpretações. Para muitos, ela ajudou a preservar a floresta. Já, para outros, impediu o nascimento de uma forma de desenvolvimento endógeno alinhada ao bioma amazônico. 

A BR-319, neste sentido, está inserida no planejamento de criação e desenvolvimento da Zona Franca de Manaus. Uma medida bem pensada, uma vez que, se a ZFM produzisse mercadorias em larga escala, seria natural que houvesse um canal de escoamento terrestre que fizesse com que os custos desta produção fossem razoáveis e atrativos. 

Todavia, há décadas esta rodovia vem sendo negligenciada por todas as esferas do poder público. Na verdade, ela funcionou plenamente apenas por uma década, pois no final dos anos 1980 ela já havia sido declarada como intrafegável.

A polêmica

Neste ponto, surge uma pergunta: por que ainda não ocorreu o asfaltamento da BR-319? É importante ressaltar que não se trata da abertura de uma nova rodovia na Floresta Amazônica, mas, sim, da restauração de uma rodovia que já funcionou plenamente.

Há várias respostas para esta pergunta. Uma delas é a ideia de natureza intocada, de santuário, de Jardim do Éden, que povoa a mente de muitos intelectuais e políticos da região. A Amazônia, de maneira geral, desde a sua invenção, para citar aqui o termo cunhado pela professora Neide Gondim, sempre foi vítima do romantismo social, das hiperbolizações, do olhar exótico e telúrico.

Obstáculo no pensamento

O mito da natureza intocada, termo cunhado pelo professor Antonio Carlos Diegues, na perspectiva de Gaston Bachelard é um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da Amazônia. Já na perspectiva de Karel Kosik a visão edênica da região constitui uma pseudoconcreticidade, uma vez que muitos desses “olhares” estão presentes nas idealizações/representações que se têm desta região ainda hoje. 

Neste sentido, o entendimento é de que o asfaltamento da rodovia traria destruição de forma acelerada para o santuário. Ora, caro(a) leitor(a), não se pode deixar de fazer uma coisa certa apenas porque há outra coisa feita errada. No caso, o errado é a grilagem e a invasão de terras públicas, a ocupação desordenada, a exploração de madeiras ilegal, dentre outros crimes. 

Reflexão

Neste contexto, precisamos refletir: se o Estado brasileiro e a sociedade decretam que, por conta destes crimes, é melhor deixar a rodovia intransitável como está e condenar cerca de quatro milhões de pessoas ao isolamento terrestre ou, então, se é melhor decretar a falência do Estado e da própria sociedade. 

O Estado brasileiro deve garantir as duas coisas: o funcionamento pleno da rodovia e a preservação ambiental e integral de seu perímetro. Isto seria uma missão impossível? Não podemos crer nisto. 

O asfaltamento da BR-319 é um direito do cidadão amazonense que paga, hoje, valores exorbitantes em passagens áreas e tem uma das cestas básicas mais caras do país, visto que mais de 70% do abastecimento de alimentos é feito por produtos que vêm de outros estados por via aérea ou fluvial.

Portanto, é preciso que os tomadores de decisão entendam de uma vez por todas que a pobreza, a miséria, a falta de educação, de saúde, de trabalho, de infraestrutura não ajudam a preservar a natureza, ao contrário, são os principais fatores que levam à utilização dos recursos naturais de maneira predatória e insustentável. É preciso dizer, ainda, que não existe natureza intocada. Isto é mito. 

A natureza em si, sem relação com o humano, é apenas um espaço desprovido de perspectiva teleológica. Portanto, não é isolando o Amazonas por via terrestre que haverá preservação de sua floresta. Na verdade, é preciso integrá-lo ainda mais ao Brasil e ao mundo como forma de garantir a sua própria preservação. 

Sociólogo

Arte: Gilmal