No Amazonas só tem ‘índio’

A reflexão trata sobre o aumento da população indígena no estado e o reconhecimento por meio do censo do IBGE 2022

Amazonas é onde mais se mata indígenas no Brasil, aponta Cimi

Ferreira Gabriel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 08/08/2023 às 13:36 | Atualizado em: 08/08/2023 às 13:36

E tem mesmo! O estado do Amazonas tem quase meio milhão de indígenas (490.854) segundo o censo de 2022.

Manaus (71,7 mil indígenas) é a cidade mais indígena do país. Seguida de São Gabriel da Cachoeira (48,3 mil indígenas) e Tabatinga (34,5mil indígenas).

Não à toa, as três cidades são lugares de importância histórica na ocupação da Amazônia em muitas épocas.

São Gabriel e Tabatinga estão localizadas nas cabeceiras dos dois maiores rios da Amazônia, o Negro e o Solimões, respectivamente.

Os dois se encontram, justamente, em frente à Manaus.

Manaus, aliás, é a única capital do país com nome indígena. Os Manaus, em realidade, ocupavam a região próxima a Santa Isabel do Rio Negro, e o baixo rio Branco, onde hoje é Roraima.

O mais famoso deles é Ajuricaba. O grande tuxaua que, capturado, teria se jogado acorrentado no encontro das águas. Preferiu a morte à escravidão.

Os que sobreviveram à guerra dos Manaus (1723-1728), como ficou conhecida a resistência contra os portugueses, foram vistos pela última vez em 1819 na região do alto rio Negro.

Onde hoje é a capital do Amazonas, vivia o povo Tarumã que, atualmente, dá nome a famosos balneários da cidade, os rios Tarumã-Açu e Tarumã Mirim.

Os tarumãs que sobreviveram à violência portuguesa, caminharam para longe. Eles se refugiaram onde hoje é a Guiana Inglesa, fazendo aliança com povos karib.

Há uma lenda de que Ajuricaba, antes de se jogar ao rio, teria lançado uma maldição: a de que nada nesse lugar jamais prosperaria.

Porém, Ajuricaba, lançou uma maldição aos colonizadores. Não aos seus. Os Manaus podem não ter sobrevivido em carne, ossos e penas, mas, a cidade que carrega o seu legado, é hoje a capital mais indígena do Brasil.

Corram para a floresta

Os portugueses iniciaram a invasão pelo litoral. Assim, parte dos indígenas fugiu rumo ao interior, adentrando cada vez mais para longe da violência colonial.

Os tupinambás do Nordeste, por exemplo, em busca da terra sem males, chegaram até onde hoje é Parintins.

É por esse motivo que a ilha, onde está a sede do município, se chama Tupinambarana, que quer dizer, dos tupinambás “não autênticos”.

O nome Parintins, aliás, é uma homenagem ao povo parintintin, que jamais viveu na ilha. Vivem mais ao sul, entre os rios Madeira e Marmelos.

Esse povo também teria vindo do Nordeste se refugiar na grande floresta. Ele faz parte de um conjunto de povos que se autodenomina kagwahiva, dos quais também fazem parte os sateré mawé. Esses sim, se estabeleceram onde hoje é o município de Parintins.

Assim, os que sobreviviam à violência no litoral, procuravam abrigo na grande floresta. Porém, mesmo aqui, quando os invasores começaram a subir e descer às margens dos grandes rios, os povos que se recusaram a fazer alianças seguiram para as cabeceiras dos rios menores.

Desse modo, não é por acaso que São Gabriel da Cacheira e Tabatinga são duas cidades mais indígenas do estado, depois de Manaus.

E é no Amazonas também, especificamente no Vale do Javari, no alto rio Solimões, a região com maior número de povos isolados do mundo.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), são 115 registros de povos indígenas vivendo em isolamento, sendo 29 confirmados e outros 86 em investigação.

Entre esses grupos, apenas os avá-canoeiro encontram-se fora da Amazônia brasileira.

Sobre eles é comum pensar que jamais tiveram contato. Contudo, trata-se do contrário. Eles tiveram contato com os não indígenas ou com outros povos indígenas contatados. Porém, dada a violência física ou cultural, escolheram nunca mais ter.

A retomada

O Nordeste é, atualmente, a segunda região mais indígena do país, com 528.800 pessoas.

Em todo o Brasil, muitos dos que sobreviveram, precisavam negar sua origem indígena.

Por séculos, decretaram o fim de diversos povos, a fim de não lhes reconhecer direitos e reparação histórica.

Desde que a Constituição de 1988 reconheceu os direitos indígenas, muitos desses povos iniciaram o processo de retomada cultural.

Para a teoria da miscigenação, esses povos teriam se misturado.

Fisicamente, formando novos tipos raciais como o caboclo e o cafuzo.

E, culturalmente, formando o povo brasileiro.

Embora amplamente difundida, inclusive nos livros de escola por décadas, a teoria encontra-se ultrapassada.

Primeiramente, quando a categoria da raça biológica caiu por terra. Em seguida, quando se percebeu que a miscigenação cultural é desigual.

Ao vencer guerras injustas, os colonizadores e seus descendentes, impuseram a cultura europeia como superior.

Desqualificaram as outras como selvagens. Desse modo, não pode haver mistura, ou miscigenação, mas tentativa de apagamento.

Aliás, o apagamento da memória foi uma das estratégias dos colonizadores para silenciar os que sobreviveram.

A difusão da teoria da miscigenação é uma delas.

O fato de termos nos misturado não anula o pertencimento a um grupo ético, indígena, quilombola, cigano, entre outros.

Somos frutos de histórias violentas.

Por isso, muitos de nós nos pofendemos quando alguém conclui que, no Amazonas, só tem índio.

Afinal, os povos indígenas foram difamados por séculos como selvagens, primitivos, burros e feios.

Assim, dada a vitória da vida desses indígenas sobre lutas tão desiguais e criminosas, os novos números são motivo de muito orgulho.

No Amazonas, somos netas e netos dos indígenas que não conseguiram matar.

No último censo, o IBGE, por pressão dos movimentos indígenas, adotou o critério de identificação étnica nos formulários aplicados fora das terras indígenas.

Desse modo, a população indígena do país quase dobrou. Mas, o que mudou foi o reconhecimento dessa população.

O novo censo então passa a ser uma lança na luta que ainda se trava pelo reconhecimento de seus direitos.

A partir do censo, será possível reivindicar políticas públicas para os indígenas que vivem nas cidades.

*A autora é antropóloga

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil