A arte é sagrada
O círio parintinense, atualmente, é a maior festa religiosa do Amazonas. Atrai milhares de romeiros e movimenta a economia da cidade

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira
Publicado em: 22/07/2023 às 14:11 | Atualizado em: 22/07/2023 às 14:11
Imediatamente após Festival de Parintins, inicia-se a festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidade. Como sempre, no dia 6 de julho, a imagem da Virgem do Carmelo retornou de sua peregrinação pelo interior. Ela seguiu em exibição pelas ruas que sequer haviam esfriado o asfalto do vaivém dos torcedores apaixonados por seus bois.
O círio parintinense, atualmente, é a maior festa religiosa do Amazonas. Atrai milhares de romeiros e movimenta a economia da cidade.
Aparentemente, há uma contradição entre sagrado e profano, muitas vezes evidenciada quando se fala das duas grandes festas da cidade. Mas essa não parece ser uma questão para os parintinenses.
Aliás, o próprio festival folclórico é acolhido pela Igreja Católica. E a praça da catedral é o lugar onde se concentram visitantes nas duas festas. O ano todo, é ainda importante ponto de encontro, especialmente aos domingos, após a missa.
Parintins é uma cidade predominantemente católica. E isso aparece nas representações das mitologias indígenas feitas por artistas de alegorias e compositores dos bumbás. Essas são atravessadas pela visão cristã da luta entre o bem e o mal. Embora, as mitologias indígenas sejam muito mais complexas e quase alheias ao cristianismo.
Outra evidência de que a dicotomia não é uma questão para a cidade é que a cada ano um artista de alegoria é convidado a fazer o andor da virgem do Carmelo. Este ano, pela segunda vez, assina o andor Miguel Carneiro, importante artista e educador, fundador do coletivo ArtRua. O feito é uma grande honra para eles.
Em sua peregrinação, a imagem sagrada ainda visita os galpões dos dois bois. Claro, para não parecer que a Santa tem qualquer preferência. A padroeira, aliás, é convidada todos os anos a comparecer na arena do bumbódromo com o Garantido e com Caprichoso. Os dois bois têm lindas toadas e uma longa lista de homenagens à festa de Nossa Senhora do Carmo. É uma carta coringa. Afinal, quem ousaria dar nota baixa à Nossa Senhora do Carmo?
A rota dos artistas
Parintins, atualmente, é uma grande exportadora de artistas plásticos expertos em grandes esculturas, pinturas e, principalmente, estruturas de ferraria para movimentar alegorias. A tecnologia parintinense de pêndulo mecânico é, inacreditavelmente, simples e visualmente impactante. Mas a ilha também exporta artistas da dança, da música e produtores de espetáculo.
Após entregarem seu produto na arena do bumbódromo, esses artistas vão fazer festa em outras cidades, dentro e fora do Amazonas. Para esses outros palcos, levam sua arte e técnicas, experimentam novas propostas artísticas e movimentam trabalho e dinheiro.
Os artistas de alegoria parintinenses trabalham em equipes. Nelas cabem pintores, escultores, aderecistas, serralheiros, soldadores, letricistas, iluminadores. Ao chegarem para compor outras festas, intercambiam seus saberes com os artistas locais na produção de espetáculos de diferentes tipos.
Alguns exemplos são os espetáculos dos bois de Manaus, a ciranda de Manacapuru, a festa dos bois de Nova Olinda do Norte, a festa dos carás branco e roxo de Caapiranga, as onças pintada e preta de Tabatinga. E, fora do Estado, trabalham nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo e em outros carnavais.
Os artistas levam, mas também trazem outras criatividades dessas terras. Alguns exemplos são os grupos de dança do Festival das Tribos de Juruti e do Carimbó de Santarém, no Pará, que tem participação de destaque nas apresentações de Parintins.
Outra categoria de trabalhadores que circula nessas festas são os comerciantes. Em Parintins, quando termina o festival, muitos deles ficam em seus pontos de vendas para a Festa de Nossa Senhora do Carmo, enquanto outros seguem para novas festas. Nessas festas, circulam vendedores de lembrancinhas, alimentos, adereços festivos com os temas locais, artesanato, mas vende-se também roupas e acessórios para todas as ocasiões.
“O olho do dono é o que engorda o boi”
Desde 1990, Parintins se tornou um grande celeiro de artistas. Mas isso não é mérito apenas do carisma de Garantido e Caprichoso. Há uma conjunção de fatores que faz com que o município seja a segunda maior economia do estado com o rebanho de apenas dois bois.
Há os fatores internos à ilha dos tupinambaranas. Posso citar como exemplo, a força local da Igreja Católica que não apenas promoveu os bois por meio do Festival Folclórico, mas plantou a semente das belas artes na escola de pintura do Irmão Miguel Pascoale, na qual se formaram as primeiras gerações de artistas.
Há investimento do capital privado, feito inicialmente, sobretudo, pela Coca Cola. E há o investimento das políticas culturais do estado que, governo a governo, concentraram esforços para consolidar o evento como o expoente da cultura do Amazonas.
Por exemplo, até 2005, o Festival de Parintins encerrava impreterivelmente em 28, 29 e 30 de junho, com a apresentação dos bois. Porém, quando as datas caíam no meio da semana, provocava uma típica virose que levava ao aumento de faltas no trabalho por motivo de doença na capital amazonense.
Brincadeiras à parte, a disputa mudou sua data original para fomentar o turismo dentro e fora do estado.
Assim o Festival de Parintins passou a encerrar sempre no último fim de semana do mês de junho.
E para controlar ainda mais a epidemia da gripe do boi, digo, para ampliar o turismo na ilha, sempre vem à tona projetos de lei que pretendem instituir feriado ou ponto facultativo na segunda-feira após o festival.
Porém, ao engordar os dois bois, tal investimento emagreceu outros. Por exemplo, o Festival Folclórico do Amazonas, na capital amazonense, era o maior do estado até a década de 1980. Existem até versos ontológicos dos antigos amos que fazem referência a importância que os bois de Parintins davam a sua participação no festival da capital.
Contudo, em meados da década de 1990, Garantido e Caprichoso alcançaram projeção nacional. Enquanto isso, o Festival da capital, Manaus, erroneamente, virou referência de uma festa menor. Contudo, ocorre que o investimento da política cultural é que era menor.
Uma evidência disso é que, embora seja uma festa junina, o Festival Folclórico do Amazonas passou a ocorrer em julho. Em parte, para não disputar o público da capital com o Festival de Parintins. Mas também para não competir por recursos.
Os bois bumbás Galante, Corre Campo e Garanhão, danças de cangaço, quadrilhas, cirandas, danças do cacetinho e danças internacionais sempre tiveram importante papel social em suas comunidades, especialmente para a juventude. São expressão da rica formação cultural da capital.
Por força da cultura popular e de suas comunidades, esses grupos resistiram mesmo com parco investimento. E vêm pressionando por mais reconhecimento.
Como um dos resultados visíveis, podemos citar que, desde o ano passado, sua realização retornou para o mês de junho. Faz uma pausa no final de semana do Festival de Parintins e retorna em seguida, na arena do Centro Cultural Povos da Amazônia, zona sul.
Esse ano, a novidade é que a festa da capital encerrará com a disputa entre os bois bumbás Galante, Corre Campo e Garanhão, dia 29 de junho, no sambódromo. Assim, puderam aproveitar a estrutura dos galpões das escolas de samba, que ficam ao lado. Com essa estrutura, podem confeccionar alegorias e fantasias ainda melhores.
A autora é antropóloga.
Foto: Divulgação