A pesca esportiva não seria crime de maus-tratos?

O autor deste artigo questiona: um anzol afiado na boca de um peixe, sendo puxado com força pelo pescador, não seria “ferir ou mutilar animais silvestres"?

A pesca esportiva não seria crime de maus-tratos?

Ednilson Maciel, por Aldenor Ferreira*

Publicado em: 15/07/2023 às 07:40 | Atualizado em: 15/07/2023 às 07:40

Na visão dos que defendem e lucram com esta prática, não é. Eles alegam que se a pesca for praticada com ética, critérios rigorosos, apetrechos corretos, o peixe pode ser devolvido à água em boas condições de saúde. Será?

Em primeiro lugar, é temerário afirmar que os peixes são devolvidos à água com boa saúde. Como se comprova isso? Usando apenas os sentidos ou métodos científicos? De imediato, já temos o primeiro problema, pois no âmbito da produção científica há poucos estudos que tratam da questão da saúde dos peixes após a soltura, por outro lado, abundam textos que fazem apologia à pesca esportiva.

Certamente, para que fosse possível a comprovação da hipótese de boa saúde dos peixes após a soltura, teria que haver o monitoramento do animal por um determinado período, a sua recaptura para averiguação por meio de exame clínico e laboratorial de seu estado de saúde, fato que na pesca feita em corpos d’água abertos é praticamente impossível. Talvez, em tanques pequenos seja possível fazer uma averiguação.

É importante destacar que o peixe é submetido a níveis altíssimos de estresse, com enorme dispêndio de energia durante a captura, afinal, ele não sabe que será solto logo em seguida. Talvez, se ele soubesse se entregaria de maneira mais fácil ao seu capturador e pouparia energia. Ademais, ele tem sua boca rasgada por um anzol de metal, é exposto ao contato com o ser humano que, para ele, é um predador.

De acordo com Angela Kuczach, bióloga e diretora-executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, “os peixes são devolvidos com vida ao seu habitat, mas com sequelas, anzóis e apetrechos que algumas vezes ficam presos, o que pode, em muitos casos, levar à morte. Os peixes de águas escuras podem ficar imediatamente cegos quando expostos à luz solar e os ferimentos causados pelos anzóis geram infecções, levando-os a não poderem se alimentar adequadamente, o que os deixa mais fracos e expostos aos predadores”.

Temos, portanto, um segundo problema, ignorado pelos defensores da pesca esportiva. Na verdade, não é muito difícil imaginarmos o quão sofrido é para o peixe a sua captura por um anzol afiado. Nesta atividade, quem se diverte é somente o ser humano. Talvez, se fizéssemos um experimento inverso e colocássemos um anzol afiado na boca do pescador, a diversão se encerraria imediatamente, não é mesmo?

Neste sentido, não há nada de esportivo nesta atividade, pois ela é muito prejudicial para os animais. Na prática, o que se tem é uma atividade cruel socialmente aceita, assim como são aceitas as bebidas alcoólicas e outras substâncias químicas que tantos danos trazem à saúde. Para um amplo estrato social, a pesca esportiva é apenas um negócio que movimenta milhões de reais.

Para além de um negócio milionário, que movimenta a economia do turismo e do entretenimento, o que está por trás da pesca esportiva é uma concepção antropocêntrica da vida, que perpassa o domínio do homem sobre a natureza, algo corroborado fundamentalmente pela teologia cristã. É nesta teologia que encontramos os alicerces desta dominação.

Uma referência fundamental para entendermos esta questão vem do texto do historiador galês Keith Thomas, intitulado O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Tomando como referência a Inglaterra, Thomas afirma que o pensamento teológico cristão foi um dos maiores contribuintes para que o homem se sentisse superior ao animal.

A teologia cristã afirma que Deus fez os animais para o uso do homem. Neste sentido, reitera Thomas, “o animal foi visto por muito tempo como um ser sem alma, o qual não sentia dor, podendo ser explorado até o fim de sua vida, tanto pelo trabalho pesado no campo como sendo açoitado por seus respectivos donos”.

Thomas relata, ainda, que “a caça foi outra forma de garantir a superioridade do homem sobre o animal selvagem, caçar animais como corças, lobos, raposas, cervos, gamos, veados, lebres e aves como águias, corujas, pombas, gansos, dentre outros, era considerado um esporte nobre, permitido apenas para a realeza, que mantinha reservas e parques florestais exclusivamente para este tipo de ‘esporte’”.

Assim como a pesca esportiva, outros “esportes” que envolvem a captura ou mesmo o abate de animais indefesos são herdeiros desta tradição. Uma tradição cruel e covarde que relativiza a dor, como se esta fosse apenas um atributo humano. Sabe-se que não é.

Neste sentido, achar que o peixe, após ter lutado por um bom tempo com um anzol de metal afiado na boca, ser capturado e manuseado, ao ser solto irá seguir o seu ciclo biológico normalmente como se nada lhe tivesse acontecido e gozar de plena saúde é, no mínimo, ser tolo.

Por fim, o Art. 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/1998) afirma que “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” é crime com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa. Neste sentido, um anzol afiado na boca de um peixe, sendo puxado com força pelo pescador, não seria “ferir ou mutilar animais silvestres”? Não seria praticar maus-tratos?

*O autor é sociólogo.

Foto/ilustração: Gilmal