Um espectro das trevas

“Diretora mostra escultura de David a alunos, é acusada de atitude ‘pornográfica’ e perde emprego”

arte Gilmal para o artigo Um espectro das trevas

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 01/04/2023 às 00:01 | Atualizado em: 31/03/2023 às 23:04

Nesta semana, li uma matéria na imprensa cuja manchete trazia os seguintes dizeres: “diretora mostra escultura de David a alunos, é acusada de atitude ‘pornográfica’ e perde emprego”. O caso ocorreu em uma escola da Flórida, Estados Unidos, e, sem dúvida, é a materialização do retorno das trevas naquele país.

De acordo com a reportagem, para a exibição de obras de arte clássicas na escola, como a estátua de David, esculpida por Michelangelo no século XVI e que mostra o seu corpo nu, é preciso autorização prévia do Conselho da escola. Com efeito, devido à falha na comunicação entre o pedido e a autorização do mesmo criou-se uma situação constrangedora na escola, fato que resultou na demissão da professora. 

Caro(a) leitor(a), não resta a menor dúvida de que estamos diante do teatro do absurdo. 

Este episódio traz à tona uma lista quase interminável de absurdos, sendo o primeiro deles o local do acontecimento. Não se trata de qualquer país, mas dos Estados Unidos, outrora berço da liberdade de expressão. Um país com enorme contribuição para a humanidade no campo da literatura, do teatro, do cinema, da música, da ciência de um modo geral, mas que nos últimos anos vem sucumbindo ao reacionarismo, ao nacionalismo tacanho baseado em uma moral pseudocristã surgida do esgoto.  

O segundo absurdo foi a demissão da professora, que estava apenas cumprindo o seu papel de educar. Ela, provavelmente, estava falando do Renascimento, movimento cultural, arquitetônico, político e econômico que trouxe a luz do conhecimento da Antiguidade Clássica ao continente europeu, submerso nas trevas da ignorância e da religiosidade há mais de mil anos. 

Para mim, é o Renascimento que lança as bases para o estabelecimento de uma nova cultura na Europa, fato que irá culminar no Iluminismo e, consequentemente, na Modernidade. Com efeito, à medida que a “segunda modernidade” avança, para utilizar aqui a definição de UlrichBeck, ou a “alta modernidade” se consolida, conforme o conceito de Anthony Giddens, contraditoriamente, irracionalmente, ilogicamente, como se fora uma maldição, o obscurantismo, a idiotia, o reacionarismo, a alienação religiosa também avançam. 

Giddens já lecionou sobre “as consequências da modernidade”, Beck já alertou para o fim da sociedade industrial e a sua substituição por uma “sociedade de risco”. De fato, estamos diante de um enorme retrocesso civilizatório, no qual todas as conquistas do Iluminismo estão se esvaindo tão rapidamente que talvez nem tenhamos mais tempo de reconquistá-las.    

Não resta dúvida de que o mundo ocidental tem caminhado a passos largos para as trevas, afinal, em que mundo ou em que momento eu ou você proibiríamos uma professora de expor uma obra de arte clássica, confeccionada por um artista genial que, com a sua arte, revolucionou o seu tempo? Paradoxalmente, o século XXI. E, pior, em um país que foi fundado sob a égide da liberdade. Com efeito, não é só nos Estados Unidos que tem idiotas que odeiam tudo o que é belo. No Brasil também tem, aliás, o país todo está cheio deles. 

Trata-se de uma parcela da sociedade que odeia a cultura e suas manifestações, a saber: a arte, a poesia, a música, a literatura, o teatro, o cinema, enfim, odeia tudo aquilo que nos torna sensível, que nos humaniza, que nos faz sair do estado de natureza e de barbárie. Então,eu pergunto: como poderá haver futuro para a nossa sociedade sem estes conhecimentos?

A resposta é simples. Não haverá futuro!

Uma sociedade que proíbe a visualização de uma obra de arte clássica em uma escola – espaço onde se dá a gênese da socialização humana –, já está falida, condenada ao caos e à barbárie. De igual forma, uma sociedade que censura livros em uma Bienal do Livro, como ocorreu no Rio de Janeiro em 2019, quando um gibi da Marvel, que trazia uma cena de beijo entre dois homens, foi censurado, também já está com os pés na barbárie. Entendo ser salutar a discordância, mas, jamais, posso admitir a censura. 

Concluo, parafraseando Marx e Engels, e afirmo: um espectro ronda o mundo ocidental, quisera eu que fosse realmente o espectro do comunismo, mas, infelizmente, não é. Trata-se do espectro do reacionarismo, do falso moralismo cristão, carregado de mentira, de obscurantismo, de ódio à cultura e a tudo aquilo que remete ao belo.

Precisamos reagir!

*Sociólogo