O trabalho análogo à escravidão nas universidades privadas 

A flexibilização dos direitos trabalhistas dentro das instituições privadas de educação superior no Brasil produz instabilidade e precariedade na carreira docente

Arte artigo aldenor ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 18/03/2023 às 06:12 | Atualizado em: 07/06/2023 às 20:26

No final de fevereiro deste ano ocorreu o resgate de trabalhadores mantidos em regime análogo à escravidão em três vinícolas do Rio Grande do Sul. Certamente, esse triste episódio é o ponto mais alto do sadismo da elite agrária gaúcha, que insiste em manter a cultura escravocrata em pleno século XXI.  

Todavia, não é apenas no setor vinícola que há processos análogos à escravidão no Brasil. Por aqui, não é difícil encontrar esse tipo de trabalho em outros setores da economia, como na educação superior privada. Guardadas as devidas proporções, nesses estabelecimentos de ensino, os(as) professores(as) são humilhados(as), explorados(as), desvalorizados(as), subcontratados(as) e roubados(as) em seus salários.  

No geral, salvo raras exceções, as universidades e as faculdades privadas brasileiras não valorizam a carreira docente. O valor da hora/aula é sempre baixo e descolado da realidade econômica do país. Além disso, esses estabelecimentos também não valorizam a titulação e a qualidade de formação do docente. 

Novamente, salvo as raríssimas exceções, há, claramente, má-fé e exploração cruel da força de trabalho na educação superior privada no Brasil.

A maioria das instituições é oportunista e explora o desespero alheio, uma que vez que, em um país que investe diminutamente em ciência e tecnologia, os(as) professores(as)/pesquisadores(as), mestres(as) e doutores(as) não dispõem de muitas opções de emprego em outros setores. Com isso, forma-se um exército de reserva gigantesco, indignamente explorado pelos capitalistas da educação do nosso país. 

Ademais, é comum ocorrerem longas jornadas de trabalho, salas de aulas lotadas, com as horas dedicadas ao trabalho de planejamento de aula e correção de provas não remuneradas, sem vale-refeição, sem auxílio transporte, sem plano de saúde, enfim, praticamente sem direito trabalhista nenhum. 

Semelhanças

Neste ponto, pergunto ao(à) leitor(a): as relações trabalhistas dentro de universidades e faculdades privadas não são parecidas com a das vinícolas do Rio Grande do Sul? Ou seja, não remetem a um processo de trabalho análogo à escravidão? 

Para mim são parecidas. A diferença é que se trata de um processo velado, silencioso, no qual os professores têm o direito de ir e vir e podem sair do emprego a hora que quiserem e puderem, fato que ocorre constantemente. 

Nesse âmbito, a desvalorização, a exploração, a subcontratação, a baixa remuneração, a transitoriedade, dentre outros fatores, produzem instabilidade e precariedade da carreira docente no ensino superior privado no país. É algo ultrajante, que promove uma educação superior de qualidade no mínimo duvidosa. E tudo isso ocorre debaixo do olhar leniente do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho.

Ainda, com a Reforma Trabalhista de 2017, tornou-se comum a contratação de professores por períodos determinados, por exemplo, contrata-se o docente por um semestre ou ano, demitindo-o e, em seguida, recontratando-o para o próximo semestre letivo. Trata-se, na verdade, de um método canalha e vigarista de se livrar de alguns encargos trabalhistas. 

Infelizmente, a maioria das universidades e faculdades privadas são verdadeiros templos de maracutaia trabalhista e pedagógica. O espírito e o método é o de sempre procurar burlar a lei. Um exemplo disso está na contratação de professores(as) mestres(as) e doutores(as), algo que é exigido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e pelo MEC. A LDB, promulgada em 1996, determina que as universidades e faculdades devem ter, em seus quadros, pelo menos um terço de mestres e doutores.

Todavia, quase nenhuma instituição cumpre isso e, pior, não há fiscalização ou, caso haja, ela é frouxa e conivente. Ser mestre e doutor, inclusive, se tornou critério de exclusão em processos seletivos para contratação de professores. 

É comum nesses processos doutores abandonarem o título e serem contratados como mestres, com valor da hora aula inferior e mestres serem contratados como especialistas, de igual forma, com salários inferiores ao seu título. 

É um escárnio! 

Como dito, a flexibilização dos direitos trabalhistas dentro das instituições privadas de educação superior no Brasil produz instabilidade e precariedade na carreira docente. Com isso, o ensino, a pesquisa e a extensão, o tripé universitário no país, são deixados de lado. 

Nesse sentido, universidades e faculdades particulares brasileiras, salvo as raríssimas exceções, são verdadeiras máquinas de exploração do trabalho de professores e demais profissionais da área de educação, visto que a mesma lógica de contratação se repete com outros profissionais. Essas instituições são, portanto, lugares produtores da moderna escravidão. 

No geral, em grande parte da rede privada, não há compromisso algum com a qualidade do ensino, da pesquisa, da extensão e dos demais processos formativos dos estudantes. Seu guia é apenas a lógica do capital e o desejo de acumulação. 

Nesse sentido, ainda que não sejam privados de convívio com os familiares e dos direitos mais básicos que garantem a dignidade humana, educadores extremamente qualificados estão em um regime de trabalho semelhante ao da colheita da uva no Rio Grande do Sul.

Arte: Gilmal

*Sociólogo