Não temos a cultura da arma de fogo

Por quatro anos, o ex-presidente incentivou e facilitou o acesso a armas de fogo no país.

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Ferreira Gabriel, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 11/03/2023 às 13:51 | Atualizado em: 11/03/2023 às 18:58

A chacina que ceifou a vida de sete pessoas no estado de Mato Grosso, no mês passado, mostra claramente aquilo que eu defino como “o efeito Bolsonaro” na sociedade brasileira. Em uma tentativa mimética de criar uma cultura que não temos, por quatro anos, o ex-presidente incentivou e facilitou o acesso a armas de fogo no país.

O principal argumento do capitão terrorista e de seus seguidores na defesa do acesso a armas de fogo perpassa o tema da liberdade, da defesa da família e da propriedade. A principal fonte de inspiração e base dessa argumentação vem dos Estados Unidos: “A terra da liberdade e da arma de fogo”.

Trata-se, na verdade, de argumentos simplórios que não levam em consideração as singularidades e as especificidades do processo histórico de colonização, formação, independência, expansão, domínio econômico e geopolítico daquela nação no mundo. Nesse sentido, o misantropo e seus apaniguados cometem um erro metodológico e histórico imperdoável: a comparação de realidades assimétricas.

EUA e a cultura da arma

Os Estados Unidos, de fato, possuem a cultura da arma de fogo. Ela está intrinsicamente ligada ao processo histórico de formação do Estado Nacional.

Desde a colonização, o sentimento é de que “o inimigo” está por toda parte. Em um primeiro momento, no processo de invasão das terras ameríndias pelos colonizadores europeus, era preciso “se defender dos ataques selvagens” dos Apaches, Cherokees, Mohawks, Sioux e outros.

Era preciso, também, se defender de franceses que, por sete anos, travaram sangrenta batalha com a Inglaterra pelo domínio da Costa Leste da América do Norte. Ainda, em seu processo de independência, ocorreram batalhas sangrentas contra os ingleses, no que se constituiu em um dos processos independentistas mais violentos de todo o continente americano. Nessa guerra, todos os ianques, de alguma forma, participaram.

Na “Marcha para o Oeste” era preciso dispor de armas para eliminar mais indígenas, anexar novos territórios e expandir as fronteiras do país. Na Guerra contra o México, entre 1846 e 1848, novamente, mais armas, sangue e novos territórios anexados.

Já na Guerra de Secessão (1861-1865), novo derramamento de sangue. Nesse período, sulistas escravagistas e nortistas defensores da manufatura e do trabalho assalariado se digladiaram.

Destino Manifesto

Ademais, todo o espírito expansionista e beligerante norte-americano estava e ainda está alicerçado na doutrina do “Destino Manifesto” que, baseado na doutrina da predestinação calvinista, em linhas gerais, afirma que a pátria norte-americana foi escolhida por Deus para liderar a humanidade na direção da realização da vontade divina.

Em todos esses eventos que descrevi era necessário ter várias armas, inclusive para caçar. Para além de uma questão de defesa, era a tecnologia da qual se dispunha na época, ainda que não houvesse armas automáticas com repetição de tiros.

À guisa de exemplo, em um rifle, se dava apenas um tiro por vez. O processo de recarregamento era manual, colocando-se pólvora pelo cano do rifle e socando-a com a vareta de metal.

Em resumo, não se tinha várias armas por hobby ou para fins de coleção, mas, sim, por necessidade, para o contorno de um obstáculo técnico.

A arma precisava estar pronta para vários tiros, mas só se conseguia isso tendo várias à disposição.

Com efeito, a cultura foi estabelecida. Hoje, é praticamente normal, em uma residência norte-americana, que os cidadãos disponham de mais de uma arma de fogo.

Armas fazem parte do ethos norte-americano.

Falsa simetria

Nesse âmbito, não se pode afirmar que os processos históricos, políticos, sociais e culturais fundantes da sociedade norte-americana sejam os mesmos da sociedade brasileira no quesito armas de fogo. Não o são. A tentativa de equiparar tais processos é uma falsa simetria.

Apesar de terem ocorrido diversas batalhas de cunho independentista no Brasil, bem como revoltas, protestos e nossa participação na sangrenta Guerra do Paraguai – episódio que marca a nossa história militar –, não é correto se falar em uma cultura armamentista em nosso país.

Não temos, nisto insisto, a cultura da arma de fogo no Brasil.

O que houve nos últimos quatro anos foi um mimetismo imbecil. Uma política esquizofrênica e antipatriota. Essa política pretendeu recriar em nosso país a longa tradição norte-americana, explicada parcialmente aqui, da cultura da arma de fogo, favorecendo, dessa forma, a poderosa indústria de armas e munições.

Mortes fúteis

A realidade é que as mortes por motivos fúteis entre nós tendem a crescer com o aumento da circulação de armas de fogo em nosso país.

Exemplo disso é a chacina ocorrida em Mato Grosso, que foi iniciada a partir de uma simples derrota em jogo de sinuca.

A verdade é que a maioria da população brasileira, por diversos fatores, dentre eles o histórico e o cultural, não tem armas, não sabe manuseá-las e nem tem o desejo de tê-las.

*O autor é sociólogo.