Pseudoletrados
Em seu artigo semanal, Flavio Lauria aponta: "Não temos outros Lulas porque o processo de socialização se assenta na lógica perversa da família, das instituições de ensino, das empresas, dos governantes e do próprio Brasil".

Ednilson Maciel, por Flávio Lauria*
Publicado em: 06/03/2023 às 10:48 | Atualizado em: 06/03/2023 às 11:35
Como um nordestino, ex-operário, sem formação escolar, sem diploma universitário, sem título de doutor ou Ph.D., que não é poliglota, bebe pinga, não é professor de universidades de grife e não tem porte aristocrático chegou à Presidência da república em um país atrelado aos pseudoletrados, a uma elite de salão, de colunáveis fúteis, controlado pelos poderosos, com profundo desprezo pela pobreza e pelos excluídos? Único caso nos 500 anos de Brasil, um fenômeno a ser estudado.
Lula tem uma nítida vocação política, além de características pessoais que o diferenciam da média. Aprendeu os fundamentos dessa atividade e refinou essas características, inicialmente no sindicalismo, depois no PT, na Câmara Federal, nas Caravanas da Cidadania, etc. Foi de líder operário à Presidência (o quarto diploma, porque o primeiro foi do Senai) após cinco campanhas debatendo com diferentes plateias.
A trajetória de Lula exige se conhecer seu pano de fundo e os principais fatores de seu êxito, numa fase na qual ainda se endeusa vestibular e diplomas acadêmicos, até em instituições de qualidade questionável. Um indivíduo sedimenta sua personalidade sob os pilares: família, educação, ambiente social/cultural e local de trabalho.
A família organizada segundo os padrões habituais frequentemente é palco de derrotados. Com exceções, prepara rebentos ao insucesso, plantando no jovem a semente da incompetência diante da vida e do mundo. A paz familiar, muitas vezes, é síntese de um jogo manipulativo, com os pais controlando os filhos e, em nome de um falso amor, protegendo-os dos embates da existência e bloqueando seu crescimento.
No entanto, a mãe de Lula, nordestina guerreira, fincou nele os tijolos do ingresso vitorioso no mundo. Cedo foi lançado na universidade da vida, porque lhe faltava o ambiente paternalista. Desde cedo ele vivenciou o sofrimento, passando fome, quando então começou sua preparação para a liderança política, vendo in loco as mazelas da população, vivência inédita nas biografias dos presidentes brasileiros, oriundos de capacitação artificial, alienante, distante do mundo.
Lula detonou seu aprendizado via o sofrimento, única alternativa de se internalizar conhecimento e experiência. Quanto ao ensino tradicional, obteve a premiação de não passar por essa tragédia. De não ser violentado pela pedagogia obsoleta, focada em medir o cognitivo em detrimento do emocional. A arquitetura educacional ancora-se em pilares formadores de nulidade.
A sala de aula (aluno olhando a nuca do colega, impedindo o debate), o professor de verbalização inútil, livros didáticos superficiais, a instituição escolar calcada na rígida disciplina, ordem, departamentalização, burocracia, tudo conspirando contra o aprendizado construtivo, com o objetivo direcionado ao mercado – somente ganhar dinheiro – e não a preparação de uma geração saudável, autônoma, crítica, ambiciosa, vitoriosa.
Outro benefício de Lula foi ter passado pouco tempo nas empresas e sempre como operário. Da forma como estão estruturadas as organizações, elas assassinam potencialidades e talentos e estimulam a mediocridade, daí serem entregues a dirigentes incapazes.
Por isso o Brasil tem elevada mortalidade empresarial. Raros são os qualificados que suportam o ritual dos empreendimentos econômicos, mormente pelo fato de a maioria esmagadora dos executivos ser pobre de espírito, de visão curta, gerando a solidariedade da mediocridade, apunhalando quem se sobressai.
Nas empresas familiares, as distorções se acentuam, com os pseudogestores trabalhando mais para os acionistas do que para o futuro do negócio, nada ou pouco diferente da Casa Grande e Senzala do período colonial. Os diretores são escravos de luxo, comprados pelas mordomias, eventualmente apelidados de empresários.
Quanto ao ambiente social/cultural, o Brasil oferece espaços à mobilidade. O êxito ou a derrocada de uma trajetória explica-se pelos méritos pessoais e não apenas pelo contexto, mesmo considerando a interdependência de ambos.
Por isso, não acredito em sorte. Ela é cruzamento de oportunidades com talento, fórmula explicativa da ascensão do atual presidente da República. Não temos outros Lulas porque o processo de socialização se assenta na lógica perversa da família, das instituições de ensino, das empresas, dos governantes e do próprio Brasil, país de limitadas oportunidades, bela geografia, clima maravilhoso, recursos naturais abundantes e, sim, com todo esse encanto e atrações, não tem líderes nem gestores.
*O autor é professor universitário, administrador com mestrado e doutorado em Administração, especialização em Economia, escreve em blogs jornais e Facebook. Mais de 1800 artigos versando sobre diversos assuntos.
Foto: Divulgação/Instituto Lula