A medieval Copa do Mundo do Catar

As arenas da Copa estão manchadas pelo sangue de trabalhadores, principalmente indianos, bangladeshianos e nepaleses, mortos durante a construção dos prédios

Catar estádio trabalhadores

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 03/12/2022 às 04:15 | Atualizado em: 07/12/2022 às 11:30

Para além do talento do estreante Richarlison, do norte-americano Pulisic ou do equatoriano Enner Valencia, a Copa do Mundo do Catar revelou também o lado perverso do machismo, do sexismo e da exclusão social de um país rico do ponto de vista de seu Produto Interno Bruto (PIB), mas, paradoxalmente, medieval do ponto de vista dos costumes e da moral. 

A Copa é disputada em um país fundamentalista. Catar é uma ditadura, onde o Estado é personificado no Emir Tamim bin Hamad al-Thani. As modernas arenas erigidas sobre a areia escaldante do deserto Khor Al Abaid estão manchadas pelo sangue de trabalhadores estrangeiros, principalmente indianos, bangladeshianos e nepaleses, mortos durante a construção dos prédios. 

A riqueza e o luxo do Catar são proporcionados pelas gigantescas reservas de petróleo e gás natural do país. Todavia, para os padrões democráticos, participativos e inclusivos do século XXI, mesmo com todo o desenvolvimento tecnológico proporcionado pela riqueza desses combustíveis fósseis, trata-se de um país atrasado. 

Apesar de haver sinalizações importantes por parte do Emir no que tange à questão feminina, tudo ainda caminha muito lentamente. Na prática, o que se tem hoje no Catar é um quadro medieval no que se refere aos direitos humanos. À guisa de exemplo, a homossexualidade é proibida por lei no país e as mulheres são tuteladas pelo marido. Aliás, não só pelo marido, mas também por pais e irmãos mais velhos. 

Nesse sentido, é impossível para uma mulher catari ir a um estádio de futebol, sozinha. Ela só irá se for na companhia do seu marido. Com efeito, parece-me que eles dificilmente as levam, pois o que se vê nas imagens dos estádios lotados são sempre os homens cataris sozinhos ou acompanhados de outros homens. A presença feminina nos estádios do Catar é visivelmente menor do que em outras Copas, fato que nos leva a declarar que esta Copa é marcadamente de público masculino. 

Um horror! 

É certo que o ambiente do futebol sempre foi masculino. Todavia, há muito tempo isso vem sendo combatido e desconstruído – claro que não por vontade deliberada dos dirigentes máximos das instituições que administram esse esporte – mas, sim, pela luta incansável de mulheres e demais militantes que buscam cotidianamente a igualdade de gênero em todos os segmentos sociais. 

Um bom exemplo dessa assertiva é a Copa do Mundo de futebol feminino, cuja primeira edição ocorreu em 1991, na China, tendo os Estados Unidos como campeão. Nessa ocasião, mesmo sem ter a mesma amplitude da cobertura jornalística da Copa masculina, o campeonato em si já foi uma vitória na batalha de décadas das mulheres por igualdade de gênero no futebol. 

Nesse sentido, a Copa do Catar foi uma espécie de gol contra na luta por igualde de gênero nos esportes, fez a masculinização desse ambiente ganhar vitrine como nunca visto antes na história das Copas. Se por um lado o evento foi um sucesso de arrecadação e de audiência televisiva, por outro, foi, também, um retrocesso na luta pelos direitos humanos, amplamente desrespeitados naquele país. 

A Copa do Catar constituiu-se, assim, em um retrato fiel e atualizado do próprio capitalismo que, desde a sua gênese medieval, é machista, sexista e excludente. Um exemplo tragicômico da exacerbação da exclusão foi o preço da cerveja que, segundo informações da imprensa nacional, chegou a custar R$ 70 o copo. 

É certo que o evento Copa do Mundo foi elitista desde a sua origem, porém, como dito, em nem um outro lugar isso foi tão exacerbado como no Catar. Não resta dúvida que, de fato, tivemos a Copa acentuadamente mais machista, sexista e excludente da história. Foi exatamente isso que ocorreu e ainda está ocorrendo nas terras daquele pequeno país no Oriente Médio, sem tirar e nem por.

Concluo, afirmando com toda a convicção, que a Copa do Mundo do Catar é um ponto fora da curva na história desse evento. Ela está sendo realizada em um país moderno do ponto de vista tecnológico, rico, mas, paradoxalmente, de pensamento e comportamento medieval. 

*Sociólogo