Manaus e o dia da infâmia

"Não há explicação racional para esse comportamento nas urnas", conclui Aldenor Ferreira em seu artigo de hoje sobre a vitória de Bolsonaro em Manaus

O Dia da Infânia

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 08/10/2022 às 02:28 | Atualizado em: 11/10/2022 às 09:16

O dia 2 de outubro de 2022 entrou para a história da cidade de Manaus como o dia da infâmia. Ao votar massivamente em Jair Bolsonaro, parte dos manauaras renegou e, ao mesmo tempo, celebrou a morte de 9.833 vítimas de Covid-19 que lá residiam. 

Em qualquer cidade minimamente civilizada, esse dia teria sido de justiça ou mesmo de vingança de seus mortos – caso o leitor prefira essa chave de leitura. Todavia, ocorreu o oposto. Eles(as) foram mortos(as) novamente, bem como tiveram suas memórias apagadas e viram, do outro lado da vida, seu algoz ser presenteado com 622.846 votos (53,55%), vencendo a eleição na cidade de maneira acachapante, com seu principal adversário, Lula, tendo 430.562 votos (37,02%). 

Talvez para 53,55% dos(as) eleitores(as) manauaras a morte de seus(suas) conterrâneos(as) na pandemia tenha sido apenas um infortúnio, um acaso, ou mesmo a vontade de Deus. Certamente, na visão deles(as), o presidente da República não tem qualquer responsabilidade nessas mortes, fato que não condiz com a realidade. 

É bem provável que muitos(as) destes(as) digam a si mesmos que “morrer, todo mundo morre”, não se pode fazer nada. Ocorre que muitas dessas mortes poderiam, sim, ter sido evitadas. Bastava boa gestão da pandemia, com respeito à ciência e às recomendações médicas, tudo o que o atual presidente não fez. Pelo contrário, com seu discurso negacionista, ele estimulou que Manaus fosse usada como laboratório para tratamento com medicamentos ineficazes ao coronavírus. 

Falta de oxigênio

Todavia, a má gestão da pandemia na cidade não parou por aí. Todos(as) devem se lembrar do episódio mundialmente conhecido da falta de oxigênio em algumas unidades hospitalares da cidade. O problema levou à morte de dezenas de pessoas. Não preciso entrevistar nenhum(a) eleitor(a) de Bolsonaro para saber o que pensam sobre esse trágico acontecimento. Para eles(as), “o presidente fez a parte dele, atendeu prontamente a cidade, resolvendo rapidamente a situação”.

Mentira!

A CPI da Covid-19, promovida pelo Senado Federal, revelou toda a negligência do governo federal. Com documentos, mostrou que o Ministério da Saúde foi avisado de uma possível crise de oxigênio na cidade dias antes do fato ocorrer. A CPI revelou, ainda, que o governo demorou a agir. 

Manaus foi socorrida primeiramente pela iniciativa de artistas famosos. Tivesse o governo agido de forma antecipada e com rapidez logo que foram informados da possibilidade de findar o estoque de oxigênio na cidade, muitas vidas teriam sido salvas. A verdade é que essas vidas não foram salvas por conta da necropolítica do governo Bolsonaro.

A situação é tão macabra que, muito provavelmente, há familiares das vítimas da falta de oxigênio entre os(as) 53,55% que sufragaram o “mito” no dia 2 de outubro. Talvez dentro dessa porcentagem esteja um único sobrevivente de uma família nuclear, afinal, não foram poucos os casos de famílias que foram quase ou completamente extintas com o vírus. 

Não há, então, explicação racional para esse comportamento nas urnas.

Por isso, afirmo que mesmo que Manaus tenha conseguido superar a pandemia da Covid-19, continua gravemente enferma. A esplêndida votação de Bolsonaro por lá revela isso. Mencionei aqui apenas o caso da pandemia, mas poderia citar os ataques covardes ao Polo Industrial de Manaus – principal fonte de empregos e de arrecadação de impostos do município –, bem como a não realização de nenhuma obra importante na cidade. 

A enfermidade de Manaus, nisto insisto, vem de um mix de fanatismo religioso, alienação e engano. Isso é característico dos tempos de pós-verdade. Mistura-se aí com mau-caratismo, sadismo e oportunismo de lideranças evangélicas corruptas. Efetivamente, não há, do ponto de vista prático, nenhuma razão para Bolsonaro ainda gozar de tão largo prestígio na cidade.   

A conclusão que chego é a de que talvez 53,59% das pessoas que sufragaram Bolsonaro nas urnas ainda respirem, mas já estejam mortas por dentro, tendo sido enterradas no negacionismo e na falta de empatia, fazendo do dia 2 de outubro de 2022, o dia da infâmia. 

*Sociólogo