Vale do Javari: diferenças lógicas e ontológicas

O que se pratica na Amazônia é mais do que genocídio, é etnocídio – morte da cultura material e imaterial

Amazônia: dois anos sem Bruno e Dom, no Dia Mundial do Meio Ambiente

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 25/06/2022 às 01:23 | Atualizado em: 25/06/2022 às 01:23

As mortes cruéis e covardes de Bruno Pereira e Dom Phillips ainda me causam muito mal-estar. Pensando neles esta semana resolvi escrever sobre as diferenças lógicas e ontológicas das causas e das gentes que eles defendiam. 

Mas o que e quem eles efetivamente lutavam para proteger?

Seu trabalho se voltava a povos da floresta, com modos de vida não regidos pela lógica capitalista, bem como a povos cuja plasticidade e a perspectiva teleológica são incompreensíveis e inadmissíveis para o ser oriundo da civilização do automóvel – aquele que habita as poluídas cidades, que vive à base de remédios para suportar o stress de um modo de vida insustentável, em todos os sentidos.   

Na verdade, há cinco séculos o kariwa (homem branco) não suporta o modo de vida dos povos tradicionais que habitam a Amazônia. Inserido em uma lógica produtivista, utilitária, que vê a natureza apenas com um meio para se atingir fins privados, deve ser difícil aceitar a plasticidade do verde da floresta, a beleza e a força das águas, o canto dos pássaros, a abundância de peixes, dentre outras especificidades e singularidades daquela região. 

O sangue de Bruno e Dom escorrendo pelo solo da maior floresta do planeta é mais um episódio dentro do processo civilizatório implementado pelos europeus nas Américas de maneira geral e na Amazônia de modo particular a partir do século XVI. Um processo cruel, covarde e sanguinário. 

Na verdade, o que se pratica na Amazônia desde essa data é mais do que genocídio, é etnocídio – morte da cultura material e imaterial – e, fundamentalmente, epistemicídio – morte dos saberes dos povos originários. 

Essa eliminação ou apagamento, que não alcança efetividade total por conta da resistência dos povos tradicionais e de gente como Bruno e Dom, representa um dentre outros passos dados pelos colonizadores e por seus descendentes para o estabelecimento de uma nova ordem econômica e social na Amazônia. 

A tragédia de Bruno e Dom não se deu devido à “falta de cuidado” dos ativistas e ambientalistas, como declarou o presidente da República. Nada disso! O destino dos dois ativistas foi selado porque eles corajosamente confrontaram a lógica colonizadora do capital na região que insistentemente tenta estabelecer um tipo de sociedade e um modo de vida incompatíveis com aquele bioma.  

Ademais, lógica e ontologicamente, Bruno e Dom estavam em sintonia com os povos do Vale do Javari. Também por isso estavam em rota de colisão com a lógica dos “donos do poder” na região. 

É importante registrar que os povos do Vale do Javari, assim como outros povos tradicionais espalhados pelo território brasileiro, não são guiados pela lógica do capital. Aliás, essa é grande diferença entre a nossa sociedade e a deles. Mas não se engane achando que isso quer dizer que esses povos não possuem uma lógica produtiva, orientada para a sobrevivência. 

Quando me refiro à lógica do capital, estou falando do “impulso para o ganho, a ânsia de lucro, de lucro monetário, de lucro monetário o mais alto possível”, conforme analisado Max Weber. O sociólogo alemão afirma que essa forma peculiar de organização econômica, a mais significativa força de nossa vida moderna, chamada capitalismo, sistematiza, racionaliza, matematiza as ações dos sujeitos, conduzindo-os à acumulação e à obtenção de lucro.

A racionalização, a sistematização, o cálculo matemático, dentre outras coisas que potencializam de forma singular o desenvolvimento do capitalismo, não fazem parte da ontologia e da teleologia dos povos tradicionais que habitam o Vale do Javari, que se colocam a produzir para sobreviver, não para acumular. 

Desafiar, então, a racionalidade capitalista foi o que levou Bruno e Dom ao encontro com a morte. O que eles defendiam tinha a ver com a ontologia dos povos originários, ou seja, com o ser das gentes daquele Vale, que não se dobrava à lógica do lucro. 

Tenho certeza de que se a eles fossem devolvidas as suas vidas, eles fariam tudo de novo, pois, como dito, o que estava e ainda está em jogo são diferenças lógicas e ontológicas, de cosmovisões diametralmente opostas às de seus assassinos e daqueles que governam o país e que, de forma direta ou indireta, apoiam os encarregados por essas e tantas outras mortes. 

*Sociólogo