Manaus, uma cidade doente (parte final)
Essa enfermidade é um mix de fanatismo religioso, alienação e engano dos tempos de pós-verdade, misturada com mau-caratismo

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 19/02/2022 às 07:43 | Atualizado em: 06/08/2022 às 05:07
No texto de hoje, falarei da terceira doença que aflige a cidade de Manaus – a doença do bolsonarismo.
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Essa enfermidade é um mix de fanatismo religioso, alienação e engano dos tempos de pós-verdade, misturada com mau-caratismo, sadismo e oportunismo, pois, efetivamente, não há, do ponto de vista prático, nenhuma razão para Bolsonaro ainda gozar de tão largo prestígio em Manaus.
A título de recordação, no Amazonas, Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial de 2018 apenas em três municípios, a saber: Apuí, com 51,37% dos votos, Guajará, com 50,48% dos votos, e Manaus, com 65,72% dos votos. Esses números mostram que, com exceção da cidade de Manaus, as vitórias em Apuí e Guajará foram apertadas.
Ainda, a partir desses dados, podemos observar que a vitória em Manaus foi acachapante e que, desde a posse, mesmo com as oscilações, a avalição “boa” e “ótima” do presidente sempre foi alta. Em outubro de 2020, em pesquisa realizada pelo Ibope, esses dados representavam satisfação de cerca de 54% da população, sofrendo leve queda e passando para 51%, naquela pesquisa.
Fato é que, nessa data, já estávamos vivendo os dramas da pandemia do novo coronavírus e havia ocorrido, na época, pelo menos dois ataques da área econômica do governo contra a Zona Franca de Manaus. Na verdade, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, junto a seu ministro Paulo Guedes, ele vem tentando enfraquecer, de forma recorrente, a Zona Franca de Manaus (ZFM), para depois extingui-la.
Não custa lembrar que o modelo de negócios implementado em Manaus na década de 1960, e atuante desde então, é o coração financeiro da cidade e, consequentemente, do estado do Amazonas. Conforme assinalei no primeiro texto desta série, é a ZFM que garante um Produto Interno Bruto (PIB) substancial à cidade de Manaus, ou seja, sua extinção não é nada interessante ao povo e à economia da região.
Além disso, a ZFM é fundamental não apenas para Manaus, mas também para toda a Amazônia, estando sua capacidade de geração de emprego e renda mais do que demostrada.
Um dado que aponta isso foi fornecido pela Superintendência de Desenvolvimento da Zona Franca de Manaus (Suframa), em 2020, em que vemos que a ZFM gerou cerca de 100 mil empregos diretos e cerca de 400 mil empregos indiretos, com faturamento de R$ 120 bilhões de reais. Isso não é pouca coisa, convenhamos, mas parece que para o presidente e sua equipe econômica esses números são irrelevantes.
Algumas ações do governo Bolsonaro, encabeçadas por seu ministro mais influente, Paulo Guedes, que ao cabo, prejudicariam a ZFM, caso tivessem obtido êxito, são: 1) a redução da alíquota de importação de produtos e insumos ligados à área de tecnologia da informação; 2) a elevação da taxa do imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os concentrados, medida que feriria de morte a indústria de bebidas; 3) a redução de 35% para 20% da alíquota do imposto de importação de bicicletas; 4) a redução em 10% da alíquota do imposto para importação de eletroeletrônicos, máquinas e equipamentos.
Não houve, nesses três anos de governo, uma trégua sequer em relação à ZFM, tendo sido várias medidas que poderiam simplesmente acabar com a competitividade do polo industrial. À guisa de exemplo, a medida que pretendia reduzir a alíquota de importação de produtos e insumos ligados à área de tecnologia da informação, que cairia de 16% para 4%, inviabilizaria qualquer tipo de negócio nessa área em Manaus, sendo as indústrias mais afetadas aquelas que produzem celulares e computadores.
Ora, senhoras e senhores, o polo industrial de Manaus é um polo bastante diversificado, mas o setor eletrônico e de informática é um dos maiores. Logo, essa medida acabaria com todas as vantagens comparativas da ZFM e causaria a demissão de milhares de trabalhadores. Contudo, devido à ação da bancada do Amazonas no Congresso Nacional, a medida não logrou êxito por completo.
De todo modo, os ataques não cessaram e, no dia 30 de dezembro de 2021, como presente de ano novo para os manauaras, o atual governo federal publicou o Decreto nº. 10.923, atacando novamente o polo de bebidas da ZFM.
Prevendo um deslocamento de 4% para 8% na alíquota do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) dos concentrados para a produção de bebidas, o decreto afetaria gigantes do setor, como Ambev e Coca-Cola. Um detalhe interessante no documento é que, nele, o próprio governo quebrou um acordo que havia feito quando da publicação do Decreto nº. 10.254, de 20 de fevereiro de 2020, que tratava do mesmo tema.
Haveria, ainda, outras medidas que poderiam ser citadas aqui e que mostram claramente a falta de compromisso do governo Bolsonaro com a cidade de Manaus e seu polo industrial. A luta da sociedade manauara, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, para barrar todas essas medidas que, certamente, vão na direção contrária dos interesses dos trabalhadores, não tem sido fácil.
Analisando, então, pelo ângulo da economia, não há razão para Bolsonaro ainda gozar de amplo apoio na capital amazonense. Noutras palavras, trabalhadores manauaras ou mesmo empresários que, direta ou indiretamente, dependem da ZFM e continuam apoiando o atual governo, podem ser classificados da seguinte forma: mal informados, sádicos ou possuidores de algum problema psicológico, pois seu amado presidente os “esfaqueia” pelas costas continuamente.
Ademais, não é preciso retomar, aqui, todos os problemas relacionados à Covid-19 na capital amazonense e a inépcia do governo federal em atender a cidade, fundamentalmente, no episódio da falta de oxigênio – esta, para mim, mais uma ação do governo federal contra o povo de Manaus.
Por outro lado, não há, efetivamente, nesses três anos de governo, uma ação concreta impactante, uma grande obra ou coisa parecida que tenha sido feita para beneficiar a população manauara. Até mesmo aquela que seria a grande realização do governo federal no Amazonas, a reconstrução da BR-319, promessa de campanha de Bolsonaro, não foi levada a cabo e já foi até esquecida.
Todavia, apesar de não ter feito nada pela capital amazonense em três anos de governo, tendo, pelo contrário, tentado prejudicá-la seguidas vezes, Bolsonaro ainda detém 37,4% de avaliação boa ou ótima na cidade, segundo pesquisa feita pela empresa Perspectiva Mercado e Opinião, em 27 de dezembro de 2021.
Como sociólogo, desde 2018, reflito sobre a relação que defino como patológica, de parte da população manauara com o atual presidente da república. Ademais, analisando os dados da pesquisa supracitada, me pergunto: por que, para 37,4% da população, o equivalente a cerca de 748 mil pessoas, o governo é “bom” ou “ótimo”?
Há três anos busco respostas para essas avaliações positivas tão altas do presidente na referida cidade e minha hipótese é que se trata de alguma enfermidade psíquica, algum tipo de transtorno de personalidade não diagnosticado corretamente.
Por fim, ainda que seja necessária maior investigação, a segunda hipótese que pode justificar o amplo apoio a um governo inepto, perpassa por questões ligadas às igrejas evangélicas. Assim como ocorre no restante do país, a principal base de apoio do governo Bolsonaro, em Manaus, continua sendo os evangélicos, principalmente pentecostais e neopentecostais, apesar de o presidente também ter apoio moderado no segmento das igrejas tradicionais-históricas.
As maiores lideranças evangélicas da cidade apoiam o atual governo federal e, até agora, ninguém rompeu com o presidente mesmo diante de todas as tragédias ocorridas, mesmo perante todas as tentativas de acabar, por exemplo, com a principal fonte de emprego e renda da cidade: a ZFM.
Como registrado no texto da semana passada, apesar de não haver homogeneidade entre os evangélicos, ainda assim trata-se de um segmento importante, eu diria, de um rebanho considerável para dar sustentação a qualquer governante.
O ponto positivo dessa história de terror é que Bolsonaro, que já navegou em águas mais tranquilas na cidade de Manaus, recebeu, na pesquisa supracitada, avaliação de seu governo como “péssimo” ou “ruim” na casa dos 35,8%.
Enfim, parece que a parte sã da população manauara está reagindo e mostrando aos doentes e desavisados as reais intenções e ações do governo.
Sociólogo.