Ditadura brasileira planejou invadir Uruguai, mostra documento dos EUA

A mesma documentação aponta ainda que o Brasil, então governado pelo general Emílio Garrastazu Médici, ajudou a fraudar o pleito uruguaio

Ditadura brasileira planejou invadir Uruguai, mostra documento dos EUA

Diamantino Junior

Publicado em: 29/10/2021 às 10:34 | Atualizado em: 29/10/2021 às 10:35

Documentos do governo dos Estados Unidos confirmam e revelam detalhes da chamada “Operação 30 Horas”, o plano da ditadura militar brasileira de invadir o Uruguai em novembro de 1971, caso a eleição presidencial do país vizinho fosse vencida pela coalização de esquerda, a Frente Ampla.

A mesma documentação aponta ainda que o Brasil, então governado pelo general Emílio Garrastazu Médici, ajudou a fraudar o pleito uruguaio naquele ano.

UOL analisou documentos secretos produzidos pelo Departamento de Estado dos EUA à época, por meio de embaixadas e consulados no Brasil e países da América do Sul. Telegramas, relatórios, memorandos mostram como era acompanhada a situação política nos países do Cone Sul.

Fundada em 5 de fevereiro de 1971 sob a liderança do general Líber Seregni, a Frente Ampla só obteve 18% dos votos na eleição vencida por Juan María Bordaberry (41%). Quase dois anos depois, Bordaberry deu um golpe de estado, iniciando uma ditadura que durou até 1985.

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Procurado a se pronunciar a respeito do assunto, o Ministério da Defesa brasileiro não respondeu aos questionamentos do UOL.

Pedido do presidente uruguaio

A intervenção brasileira foi um pedido do próprio presidente uruguaio Jorge Pacheco Areco, do Partido Colorado. O plano foi apresentado e contava com o apoio do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.

Documentos estadunidenses que vieram a público em anos anteriores já revelavam que Nixon e Médici concordaram em golpear países governados pela esquerda, a exemplo do Chile de Salvador Allende e da Cuba de Fidel Castro.

A invasão do Uruguai foi batizada no Brasil como Operação 30 Horas, em referência ao tempo que as tropas brasileiras demandariam para chegar e ocupar a capital Montevidéu a partir da fronteira com o Rio Grande do Sul.

Três meses antes das eleições que definiriam o novo presidente uruguaio, documento da embaixada dos EUA em Montevideu, de 25 de agosto, já falava sobre “possíveis planos brasileiros de ação no Uruguai para impedir a Frente Ampla de assumir o controle, incluindo o uso de forças armadas”.

Informativo secreto da embaixada dos EUA em Buenos Aires ao Departamento de Estado em Washington, de 27 de agosto de 1971, relata que a “Argentina não tem planos de intervir nas eleições, mas apoiaria um golpe para reintegrar o atual presidente Pacheco se a esquerdista Frente Ampla vencesse”.

Em 20 de julho de 1971, o embaixador argentino no Rio de Janeiro, Osiris Villegas, já confirmava o plano de invasão do Uruguai.

O objetivo da invasão era evitar que o Uruguai tivesse um governo de esquerda, como já ocorria no Chile, com a eleição de Salvador Allende em setembro de 1970. Os militares brasileiros, incentivados pelo presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deveriam enfrentar mobilização sindicalista e estudantil, além do movimento guerrilheiro Tupamaro, que no ano anterior havia sequestrado o chefe do programa de Segurança Pública dos EUA no Uruguai, Dan Mitrione (que foi morto) e o cônsul do Brasil Aluysio Dias Gomide —libertado após sete meses de cativeiro e pagamento de resgate pela família.

De acordo com relatório confidencial do embaixador dos EUA Willian Rountree, a ajuda brasileira aos militares do Uruguai, após o golpe, “se daria na forma de armas, treinamento, assistência financeira etc.”.

O plano ofensivo organizado pelos brasileiros envolvia diretamente Médici, o chefe do gabinete militar, general João Baptista Figueiredo, e o ministro do Exército, general Orlando Geisel, além de outros comandantes militares.

À época, o Uruguai passava por um momento delicado. Vivia uma crise social, política e econômica. Médici conhecia muito bem a situação do Uruguai —sua mãe nasceu em Paysandú, no interior uruguaio— e desenvolvia ação atrelada aos planos dos Estados Unidos desde que chefiou o Serviço Nacional de Informações (SNI), de 1967 a 1969. Estava alinhado à “Doutrina Nixon”.

O golpe de estado no Uruguai se daria sob o comando do general Breno Borges Fortes. As tropas brasileiras chegaram a entrar em prontidão em novembro de 1971. Seriam deslocados contingentes dos quartéis de Bagé, Santana do Livramento, Chuí e Uruguaiana, todas cidades situadas na fronteiracom o Uruguai.

Médici determinou que o III Exército, com sede em Porto Alegre, hoje denominado Comando Militar do Sul, preparasse a invasão do Uruguai.

A Base Aérea de Santa Maria (RS) contava com 112 caças Xavante, que poderiam adentrar o Uruguai e chegar em pontos importantes do território em poucos minutos.

As tropas brasileiras sairiam de Porto Alegre, Uruguaiana, Santana do Livramento e de Bagé. Cruzariam as fronteiras em direção a Montevidéu e tomariam até mesmo a então maior hidrelétrica existente no país, Rincón del Bonete, em Paso de Los Toros, que abastece a capital uruguaia.

O golpe deveria ser consumado rapidamente, para evitar represálias internacionais.

Militares brasileiros falaram sobre a invasão

Ao longo dos anos, militares brasileiros que estiveram envolvidos no planejamento da invasão do Uruguai deram seu testemunho dos fatos.

A Operação 30 Horas foi chamada dentro dos quartéis brasileiros como Operação Charrua, conforme descreve o tenente Marco Pollo Giordani no livro “Brasil Sempre”.

“Participei da preparação à ‘Operação Charrua’. Íamos ‘invadir’ o Uruguai, já quase em mãos dos Tupamaros. A vibração era tanta entre nós que parecíamos viver um momento grandioso. A ‘Operação Charrua’ só não foi desencadeada porque os uruguaios resolveram o problema através das urnas”, escreveu Giordani, que integrou a 2ª Seção (serviço secreto) do Comando Militar do Sul.

O nome Operação Charrua descrito pelo tenente Giordani se refere à 2ª Brigada de Cavalaria Mecanizada de Uruguaiana, a Brigada Charrua. Os charrua eram um povo que habitava a região dos pampas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina.

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Foto: Folhapress