A verdade que liberta
"O uso que ele faz da palavra sagrada não é mais do que pura malandragem"

Neuton Correa
Publicado em: 14/08/2021 às 08:08 | Atualizado em: 24/09/2021 às 17:48
Aldenor Ferreira*
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, esse foi um dos lemas da campanha, em 2018, do atual presidente da República.
Mesmo tendo passado quase três anos de sua eleição, de vez em quando ele repete a famigerada frase, que está registrada no evangelho de João 8:32. Mas o uso que ele faz da palavra sagrada não é mais do que pura malandragem, que enganou e ainda engana milhões de cristãos Brasil a fora.
Para piorar, os teólogos cristãos sabem que o sentido atribuído ao versículo pelo presidente e por toda a caterva que o cerca não é o mesmo dado por João em seu evangelho. Mesmo assim, eles fecharam os olhos por descaso ou irresponsabilidade.
Está tudo errado!
A hermenêutica aplicada ao texto revela outro sentido. A verdade à qual João se refere não é propriamente a verdade do dicionário Aurélio, por exemplo: “circunstância, objeto ou fato; realidade”, “pensamento, ponto de vista”, ou mesmo “pureza de sentimentos; sinceridade”.
Não é isso!
Em exegese bíblica, “a regra é clara”, ou seja, não se pinça apenas um versículo de um texto completo. Já dizia um velho professor de teologia que: “texto fora de contexto é pretexto para heresia”. Logo, o caminho para a análise e a interpretação de qualquer texto é verificar logo de imediato o seu contexto.
No caso de João 8:32, Jesus estava falando aos seus compatriotas no templo deles. Certamente havia, na ocasião, pessoas de diferentes classes sociais, além de lideranças religiosas, como os fariseus, ou mesmo autoridades pertencentes ao Sinédrio. Lá, Jesus estava fazendo duras críticas ao comportamento mundano deles.
O versículo anterior revela isso, vejamos: “Jesus dizia, pois, aos judeus que criam nele: se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos” (João 8:31). “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).
A fala de Cristo no versículo 31 é conclusiva: a palavra dele é a verdade. Portanto, conhecer e permanecer na palavra dele é a ação que promoverá a liberdade. Nesse sentido, Cristo é a verdade que liberta, o logos de Deus, o verbum, a palavra.
João registra, fielmente, no versículo 32, essa conclusão, que poderia ser parafraseada da seguinte forma: “e conhecereis a Cristo e ele (a verdade) vos libertará”.
O que se diz na bíblia não tem nada a ver, portanto, com o “ficar sabendo de alguma coisa”, ainda que esse sentido muitas vezes seja dado ao versículo em questão pelo presidente e por toda a malta que o apoia.
Até porque João, o apóstolo amado, não era fofoqueiro, não estava interessado em comunicar coisas terrenas, efêmeras, tolas; a preocupação dele era com o eterno, com o transcendental, tanto que o livro do Apocalipse é revelado a ele – um texto escatológico, cujo entendimento requer alguns anos de estudos.
A teologia do presidente e dos seus sequazes tem a mesma profundidade de uma tampinha de refrigerante. Eles sempre se referiram, por exemplo, à operação Lava Jato como a grande “reveladora de verdades” sobre o mundo corrupto da política, dando a entender que o povo brasileiro, ao tomar posse dessa verdade, havia se libertado do julgo da esquerda.
Poucas coisas são tão tolas quanto essa interpretação, já que, repito, não é dessa verdade que o versículo trata.
O presidente e seus seguidores se apropriaram do texto de João 8:32 de forma vazia. Desprovidos de fundamentação teológica, exegética e hermenêutica, fizeram uma associação desse texto às verdades mundanas da política, criando uma semântica própria com objetivo de dar sustentação teológica à malandragem. E tudo feito “em nome de Jesus”!
O fato é que o presidente e seus lunáticos seguidores não conhecem a teologia cristã, que tanto dizem se pautar e defender, não conhecem o próprio livro sagrado que dá base filosófica e teológica para a constituição do que dizem ser sua fé.
Não conhecem, portanto, a Cristo (a verdade) e, ao invés de serem libertos por ele, estão cativos, aprisionados à palavra.
É preciso ter cuidado, pois o próprio texto indica os pré-requisitos para serem discípulos: “se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos”.
Não estão na palavra de Cristo, nem de longe pode se afirmar que estão. Cristo não falava e nem espalhava mentiras, não amava a injustiça, não destilava ódio, não era obtuso, não condenou prostitutas e ladrões. Cristo pregou o amor e a justiça, a paz e a mansidão.
Não são, portanto, discípulos do Nazareno, são apenas malandros mal-intencionados. A esperança é que, no meio desse povo todo, há doces e raras exceções.
*Sociólogo
Foto: Marcos Corrêa/PR